Trupe Chá de Boldo | Nave Manha

Na teoria, a Trupe Chá de Boldo começa o jogo perdendo. O nome, os 12 integrantes, as influências, os parceiros mais próximos: tudo poderia jogar contra. Afinal, o retrospecto de cada um desses itens não é dos mais favoráveis à música brasileira. “Trupe” já era um coletivo arruinado pelo apelativo O Teatro Mágico, de Fernando Anitelli; uma banda com um grande número de integrantes na formação oficial também não significa muita qualidade, diferenciação ou mesmo peso na qualidade final, como vem demonstrando a brasiliense Móveis Coloniais de Acaju; amparados e influenciados tanto pelo recente repertório de Tatá Aeroplano (imagina a cara do seu interlocutor bem no momento em que, explicando a Trupe pra ele, você diz Tatá Ae-ro-pla-no) quanto pelos ecos da vanguarda paulista, o gramado do certame fica ainda mais pesado para o contra-ataque. Enfim, para o bem de todos, eu já vos adianto: “Nave Manha” é uma ótima surpresa de 2012.

Com “Nave Manha”, a Trupe Chá de Boldo dá um passo à frente no cenário independente brasileiro. É muito bom quando, de repente, um arremedo estético, mesmo que não rompante em seu todo, te lembra que é possível associar uma banda diretamente com algo realmente forte, mas algo vindo direto da canção. Não era assim com “Bárbaro”, debute do grupo em 2010. Após cinco anos na noite de São Paulo, o primeiro álbum da Trupe estava pronto e com os mesmos referenciais de “Nave Manha”. Mas se guardam semelhanças na raiz, as diferenças na distribuição da seiva são bem nítidas entre os dois registros.

“Tudo vai ficar leve”, cantam Gustavo Galo e Julia Valiengo em “Apesar”, quarta do disco. E “Nave” é leve mesmo. Serviu pra tirar o peso que estava em “Bárbaro”, disco que fica marcado pela tentativa de ter em si as tentativas da banda soar multifacetada, multi-influenciada. Sem ter que prestar contas com a estreia, a Trupe de 2012 é mais leve e muito mais ambiciosa: é pop. As referências continuam lá, mas uma teatralidade mais pastelona, mais explicativa (até Blitz, talvez) diverte a audição à medida em que o interesse de acompanhar mais de perto a banda aumenta.

Nave Manha resgata referências óbvias (de Arrigo a Assumpção, como em “A Rolinha e o Minhocão” e “Belém Berlim”, respectivamente) e outras nem tanto (como Alzira E, autora de “Paralelas” – disco de 2005 em parceria com Alice Ruiz -, considerado pelo vocalista Galo um dos discos apropriados pela Trupe). O mais importante, no entato, é a conexão com o presente. Falei de Tatá Aeroplano no começo do texto não só por ser este compositor um dos incentivadores da Trupe. Suas canções estão lá, sua voz também e, veja, o seu trabalho junto ao Cérebro Eletrônico está lá. Todo o conteúdo de sexo e drogas que estão nas narrativas de Tatá estão em “Nave Manha”. Afinal, como bem observou Lorena Calabria,  ali se fuma, se bebe, se transa – escancarado, sem mixaria.

Louvar o atual é um outro motivo que faz de “Nave…” um grande disco. O parágrafo aumenta, o interesse aumenta e, principalmente, sua peneridade como trabalho. “Mar Morro”, espetacular composição de Aeroplano e presente no primeiro álbum de sua banda, está lá, tão sensacional quanto a versão mãe prestando homenagem ao Cérebro, assim como “Verão” abre espaço para a voz recente de Márcia Castro.

As composições soam familiares como uma garrafa pet de 2 litros no almoço da casa. E, aí, temos outro grande ponto de “Nave”. Em grande parte sob responsabilidade de Gustavo Galo, ao invés de soarem como pastiches de trabalhos anteriores de Arnaldo Antunes, as onze faixas, quando não estão roteirizando um filme com locação no Centro de São Paulo, estão fazendo um pop longe do banal. Se soa familiar, é mérito das ótimas situações nas quais o ouvinte é conduzido, como em “Verão” (“melhor no espaço que no spam / melhor ciganos que seguros”), “Se eu for parar” (“Se for pra parar pra pensar: hesito, não canto, nem rio, nem voo, não sinto, meu bem se vai. (…) Se quando paro só penso em você”) e na declaração de “Até chegar no mar” – de letra que parece endereçada ao mesmo você que fez o compositor perder a compostura em “Decência”, do segundo álbum do Cérebro – (“pra você que transforma Rambo em Rimbaud, pouco em palco (…) Eu canto, meu amor, até chegar no mar”). Este lirísmo cresce ainda mais com as interpretações e intervenções de Ciça Goes, Leila Pereira e Júlia Valiengo nos vocais junto a Gustavo Galo e com as participações, além de Tatá, de André Abujamra (na voz, em “A Rolinha e o Minhocão” e “Até Chegar no Mar”, e na guitarra em “Belém Berlim”). Infelizmente, a tática não soa tão interessante quando o baterista Gongom assume “Box 11”, tornando-a uma faixa menor do álbum (o que não acontece em “Na Garrafa”, um dos destaques do álbum, divida entre Júlia e o percussionista Gustavo Cabelo)

Sem quebrar barreiras estéticas, a produção de Gustavo Ruiz (irmão de Tulipa) chega mais perto de ouvintes que, por ironia ou comparação boba mesmo, passariam longe da banda. De piada interna e boa vontade a música independente do Brasil já está cheia. O passo à frente da Trupe deixa o grupo um pouco mais próximo de álbuns como (não mencionarei “Nó Na Orelha”, porque já é uma peça muito bem consolidada como obra deste recente pop brasileiro) “Efêmera”, de Tulipa Ruiz, e “Japan Pop Show”, de Curumin ; senão esteticamente, ao menos na ambição de ser amplificado Deus-sabe-lá-onde-em-que-canto-da-indústria (Galo faz questão de afirmar que, este ano, a Trupe parte com a cara e a coragem – e o dinheiro contado – para todos os cantos do Brasil e orgulha-se de pisar com a Trupe em capitais como Vitória, por exemplo). No álbum (que, aliás, tem suas letras diagramadas como se cada música fosse roteiro de um curta-metragem paulistano) e no palco, felizmente, “Nave Manha” se faz anunciar para além de suas influências e também de seu gueto.