Metá Metá: MetaL MetaL

“Pois não desejas sacrifícios, senão eu os daria; tu não te deleitas em holocaustos”
Salmos 51:16

Como diriam as más línguas¹, “se macumba desse certo, campeonato baiano terminava empatado”. Parece verdadeiro que macumba não funcione. Afinal, não vislumbro Kiko Dinucci explicando Iorubá e seus estudos de cultura africana no palco do Domingão do Faustão. Tampouco acho que Maria Gadú convidaria Juçara para um dueto ou que Thiago França lance um “Brazilian Sax meets Kenny G”. A “Bahia Fantástica” de Rodrigo Campos não foi parar como trilha em “Gabriela”, Gloria Perez nunca terá condições de colocar “MetaL MetaL” como parte inseparável de “Salve Jorge”, seu atual folhetim. E, de qualquer modo, os carros e os apartamentos do trio não estão quitados. Macumba não funciona, mas temos um recorde das crenças populares aqui. Em seu novo álbum, o Metá Metá traz o amor (e um certo ódio) em cerca de 40 minutos. Na verdade, o Metá Metá é a Igreja Universal do Reino de Deus da música brasileira (e os diáconos são a voz, o violão e o sax de Juçara, Kiko e Thiago); se você estiver desesperado em busca de uma salvação, vá a um dos cultos e prepare-se para o descarrego.

“Mas vede que essa liberdade não seja de alguma maneira escândalo para os fracos”
1 Coríntios 8:9

“A gente vai dando nome” foi uma frase que eu ouvi Kiko Dinucci dizer. Por outras tantas vezes, o compositor de aparência bruta e caucasiana, como se viesse de um filme lado b soviético, jogou a palavra liberdade como motivo de tudo o que envolve o Metá Metá e o seu redor. O revelador em “MetaL MetaL”, álbum que reúne pela segunda vez em disco a sincronia quase natural de Juçara Marçal, Thiago França e Dinucci, é que a liberdade que define os rumos do Metá Metá pode, talvez, não somente estar libertando-os continuamente de forma artística, como também pode ser um processo de alforria para quem se envolve há bastante tempo com o trio.

“Que aproveita a imagem de escultura, depois que a esculpiu o seu artífice? Ela é máscara e ensina mentira, para que quem a formou confie na sua obra, fazendo ídolos mudos?”
Habacuque 2:18

O (agora) guitarrista se encontrou em determinada técnica que, ao ouvinte, torna-se quase impossível distinguir onde começa o Kiko Dinucci original de Guarulhos e de punk californiano do Black Flag no walkman e onde termina o violonista que se encontrou sofisticado com Douglas Germano ou anteriormente com Juçara Marçal.  E, veja, isso é um processo de síntese. E não há nada mais sintético que o pop. Estamos falando de um trio que engoliu as listas de 2011 com um álbum que fazia todas as platéias baterem cabeça em músicas carregadas de Iorubá (às vezes, integralmente) ou com prolongamentos da busca por um lirismo urbano (que entremeia a obra não só de Dinucci, mas também de seus amigos Criolo, Romulo Fróes e Rodrigo Campos). Estamos em um caso único de rompimento na música popular brasileira dos anos mais recentes.

“O ódio excita contendas, mas o amor cobre todos os pecados” 
Provérbios 10:12

“Exu” funciona como um prólogo não somente de introdução, mas também de conexão. O ritual de “MetaL MetaL” é oferecido sem explicação aos presentes como em um terreiro. Explicação você pega na escola, nos preconceitos da classe média, baixa e alta para com a cultura afro-brasileira. Se você chegou até aqui, se você pisou os pés no chão, você dança. E, a partir de “Oya”, “MetaL MetaL” será feito de pequenos auges construídos por habilidades que foram construídas com o tempo. A de Juçara Marçal é quase cínica. É possível uma terrível confusão do ouvinte ao ouvir a voz da cantora que, destra e maliciosa, passa do riso ao ódio sonoro em questões de minuto. Ao vivo, são aterradoras as possibilidades que Juçara traz ao trio. Em “São Jorge”, Marçal derruba uma tropa inteira, joga guimba nos olhos do soldado e surge imponente de armadura e roupas do protetor. Como se fosse intocável, como se estivesse ungida. A melhor do disco.

“Mas, chegando também o que recebera um talento, disse: Senhor, eu conhecia-te, que és um homem duro, que ceifas onde não semeaste e ajuntas onde não espalhaste” 
Mateus 25:24

“MetaL MetaL” talvez não possa ser rigidamente divido em dois como se fez no primeiro álbum do trio. Thiago França, no entanto, é quem mais explora o novo contexto em que está. Se o pedal Boss MZ-2 Digital Metalizer deu à guitarra de Dinucci um peso, ele é estético. Afinal, ele já era notável nas distorções feitas em seu violão anteriormente. O que o Metalizer possibilita é uma outra liberdade: a de Thiago. Mais do que nunca, França é aqui um instrumentista que encarna, por vezes, o protagonismo uma vez que conduz certas faixas com seu saxofone (ora também com o estranhíssimo EWI — uma espécie de instrumento de sopro e sintetizador) sempre alternando suas nuances de sentimento. Acompanhando e seduzindo a melodia de Kiko Dinucci, Thiago explora suas viagens pelo MarginalS e age como um entortador de roteiros, iluminando com violência (“Rainha das Cabeças” e “Logun”), hipnose (“Orunmila”), Danny Elfman (“Man Feriman”) e quase cubano em “Cobra Rasteira”. Caso “MetaL MetaL” seja lançado em LP com “Metá Metá” como lado-b, isto ficará ainda mais claro. Ou obscuro.

“Eia, pois, agora vós, ricos, chorai e pranteai, por vossas misérias, que sobre vós hão de vir” 
Tiago 5:1

É claro que eu recomendo o descarrego desses pastores para você que é um ouvinte cansado do que lhe oferecem no mundo secular da MPB. Contudo, gostaria mesmo que algumas estrelas (as radiofônicas e os fofos alternativos) se convertessem bem no meio da celebração visceral do Metá Metá e, de joelhos, entendessem que virtuose, bom humor, improviso, poesia e violência podem libertar ou, no mínimo, diminuir as dores da opressão que sofremos em toda e qualquer instância de nossa vida cotidiana. E arte reprimida e embalada em pacotes para consumo é conforto sem, no entanto, expressão. E paz sem voz, já nos ensinou a música popular brasileira, não é paz: é medo. E o medo é vendido de diversas formas: como preconceito, violência gratuita e, até mesmo, como arte. “MetaL MetaL” é libertador e o Metá Metá a nossa melhor forma de fazer rock and roll.

“Orí eni ní um ‘ni j´oba” (“a cabeça de uma pessoa faz dela um rei”) 
ditado Iorubá.

¹ Música de Itamar Assumpção presente nos shows do Metá Metá