Entrevista: Guilherme Granado, Hurtmold

por Bernardo Oliveira.
Entrevista originalmente publicado no
 Matéria.

Após cinco anos na estrada, imersos em projetos paralelos, os integrantes da banda paulistana Hurtmold estão de volta com um álbum intitulado “Mils Crianças” (Submarine). Trata-se de um trabalho diferente de tudo o que o grupo fez até então. “Mils Crianças” traz uma banda em grande forma, que surpreende mais uma vez pelo caráter exploratório e pela absoluta ausência de compromisso com gêneros e estilos. De cara, o que mais chama a atenção é o contraste entre a imagem psicodélica que provém do título e a economia arrojada de suas nove composições.

Da mesma forma, as palavras sóbrias de Guilherme Granado contrastam com o fato de que ele pertence a uma das bandas mais importante da música brasileira da primeira década deste século. “Eu vejo nosso trabalho como algo bem prático: começamos a fazer, continuamos fazendo e agora estamos aqui, onde quer que seja”, declarou ao Matéria em entrevista virtual. Uma banda que explora a riqueza dos contrastes, mas evita ao máximo as contradições…

Formado em 1998 por Granado (teclado, vibrafone, eletrônicos), Mauricio Takara (bateria e trumpete), Marcos Gerez (baixo), Mário Cappi (guitarra), Fernando Cappi (guitarra) e Rogério Martins (percussão e clarone), o Hurtmold se mantém na defesa da bandeira do punk, manifestada pela aversão a toda e qualquer forma de cinismo estratégico ou compromisso com rótulos. Parte da perspectiva estóica do grupo pode ser apreciada no documentário Agatha Christie, lançado em meados de 2012 e dirigido por Felipe Navarez, que registra dois shows da banda pela Bélgica.

Contudo, o grupo não é simplesmente um dos responsáveis pelo aparecimento e desenvolvimento de outras vertentes da música instrumental brasileira, para além da “ditabranda” fusion/samba-jazz. Eles também se ramificaram em uma série de projetos de reconhecida importância, tais como Bodes e Elefantes (de Granado, que também possui um projeto solo), Chankas (de Fernando Cappi), MDM (Mário Cappi), M. Takara, entre outros, ampliando ainda mais o espectro de atuação e criação do coletivo. Soma-se a isso o fato de que hoje colaboram com artistas do calibre de Rob Mazurek, Pharoah Sanders, Bill Dixon, Prefuse 73, entre muitos outros. Relevância é ainda uma palavra insuficiente para descrever a atuação do grupo no cenário geral da música brasileira, e na cena paulistana em particular.

Abaixo, a entrevista virtual que fizemos com Guilherme Granado. Boa leitura.

Fita Bruta: Começo a entrevista com uma pergunta anti-entrevista: Edmundo Clairefoint, que assina apresentação do documentário Agatha Christie, afirma que o filme retrata “a inexistência de perguntas e a falta de respostas (…) o significado soterrado por essa preguiça de falar, de conversar, de explicar”. Podemos estender essa definição ao trabalho do Hurtmold? Algo semelhante a um “discurso sobre o nada” ou a ausência absoluta da necessidade de se criar um discurso sobre o próprio trabalho?
Guilherme Granado: Acho que não precisamos, nem queremos criar um discurso sobre o que fazemos. Não por preguiça, ou pelas músicas serem vazias de significado. Não é esse o caso. Só acho que a nossa música deve falar por si só, sem amarras a nenhuma “escola” ou qualquer coisa do tipo.

FB: Em todo caso, trata-se de um trabalho repleto de referências (do punk ao pós-rock, do dub ao jazz espiritual, etc.) que se catalisam em um resultado original. Durante mais de uma década em atividade, como você descreveria ou resumiria a posição do Hurtmold no cenário da música brasileira da última década?
Granado:
É realmente difícil pra mim descrever ou apontar isso. Até porque nunca pensei sobre isso, e acho que ninguém da banda pensou. Nunca conversamos sobre algo do tipo. Eu vejo nosso trabalho como algo bem prático: começamos a fazer, continuamos fazendo e agora estamos aqui, onde quer que seja. Gostamos de tocar juntos e somos amigos muito próximos. Simples assim.

FB: Quando você afirma que as músicas não são vazias de significado, fico me perguntando que significados são esses? Ou é algo que vocês pretendem que o público mesmo descubra?
Granado: Acho que esses significados são muito pessoais pra cada um de nós. Acho que entre nós mesmos temos interpretações e sentimentos diferentes por cada canção, ou até passagens particulares delas. O mais legal é deixar cada pessoa achar o significado que ela quiser, ou a sua própria relação com cada música.

Acho que as músicas do disco anterior talvez fossem mais longas, com passagens mais estendidas, e esse pode ser visto como mais ‘direto’ por algumas pessoas.

FB: Para mim, há um apelo imagético muito forte: podemos imaginar cenas de um filme escutando as convenções e mudanças de clima em “SNP”, ou o sotaque afro de “Tomeletomele”… Como vocês lidam com a influência de artes extra-musicais?
Granado: Tudo influencia, acho que a vida mesmo é a nossa maior influência. Quase não conversamos sobre música, conversamos sobre a vida, somos amigos há muito tempo e realmente passamos tempo juntos, fora da hora de tocar. E isso é cada vez mais a nossa maior influência. E não só entre nos seis, mas nossas famílias, amigos, etc.

FB: Li em uma entrevista recente que vocês se consideram uma banda punk e entendi como se fosse uma provocação ou uma alusão à filosofia de vida ou de trabalho. Isso por conta da diluição do discurso punk nos dias de hoje, como ocorre em diversos segmentos do hip hop, por exemplo. Como o punk se reflete na vida e no som de vocês hoje?
Granado: A maneira como eu entendo o punk rock ainda informa muito tudo o que eu faço, tanto na música como fora dela. Sei que isso também serve para o resto da banda. O Hurtmold é, sim, essencialmente uma banda de punk rock. Até porque nossa ideia de punk é bem aberta e permissiva, no sentido estético. Não acho que foi uma “provocação”, de maneira nenhuma. É sim, uma afirmação de como vivemos e trabalhamos. Mas é estético também.

FB: Tem mais a ver com a questão ética (independência, “faça você mesmo”, cooperação, etc.) do que propriamente com uma sonoridade?
Granado: 
A questão da independência, num sentido bem amplo, conta bastante. Mas a sonoridade também faz parte, crescemos ouvindo punk rock (e muitas outras coisas) e ainda ouvimos esse tipo de música, com certeza. E isso, de alguma maneira, vai aparecer no que a gente faz.

Temos algo que se pode chamar de ‘método’. E isso consiste em não ter nenhuma ideia pré-concebida de como nenhuma canção deve soar.

FB: Na mesma entrevista você diz que considera Mil Crianças como “o nosso disco mais estranho” (no que eu concordo). Você acha que essa estranheza resume o contraste entre o primeiro Hurtmold (de “3am: A fonte secou” e “Et Cetera”), para o Hurtmold a partir de “Mestro” e do penúltimo disco? “Mils Crianças” é, assim, um disco de síntese?
Granado:Difícil analisar isso. Acho que “Mils Crianças” é uma síntese desses últimos cinco anos, antes de tudo. Em nenhum momento conversamos ou pensamos sobre dialogar diretamente com nenhum trabalho anterior ou com a nossa “obra”. Fomos compondo, resolvendo problemas, polindo as coisas e esse foi o grupo de canções que saiu no final desse processo. Mas, é claro, somos as mesmas seis pessoas, com as mesmas experiências e tudo isso informa e aparece no que a gente faz.

FB: Vocês passaram cinco anos sem lançar, mas não pararam de trabalhar. Acompanharam Pharaoh Sanders e Marcelo Camelo e levaram adiante seus respectivos projetos solo. Em que medida, pelo menos de sua parte, “Mils Crianças” reflete a contribuição de todas essas experiências externas ao grupo?
Granado: Não existe separação. Tudo que a gente viveu, musicalmente ou não, vai entrar no processo de composição. Não consigo exatamente apontar momentos ou escolhas que vieram por causa de uma experiência específica. Mas está tudo lá, com certeza. Todo mundo que a gente conheceu, colaborou, viu e ouviu faz parte do disco. Aliás, obrigado.

Um amigo me disse algo do tipo: “ao invés de se mover por expansão/contenção, o Hurtmold se move na horizontal: mais notas/menos notas; mais brilho/menos brilho.” Sob o ponto de vista da concepção, existe um conceito ou uma estratégia deste nível por trás das tramas instrumentais de “Mils Crianças”?
Granado: 
Não. Nossa ideia é fazer música que fale ao nosso coração e espírito e que, com sorte, chegue também nas pessoas.

FB: Como eu já disse, acho realmente o “Mils Crianças” o disco mais estranho do Hurtmold, sobretudo em comparação com o clima de experimentação jazzística do disco de 2007. O clima excessivo e os improvisos mais ruidosos permeiam o disco anterior, enquanto “Mils Crianças” é límpido, quase apolíneo — talvez por isso o considerem mais “acessível”. Quais as principais diferenças que você detecta no processo de criação entre um e outro?
Granado: 
Demoramos cinco anos pra fazer esse disco. O processo de composição foi mais longo, e até por causa disso, mais esmerado. Cinco anos se passaram nas nossas vidas e isso conta muito pra uma pessoa. Estamos cinco anos mais velhos. Colaboramos com muita gente, tocamos bastante, viajamos pelo mundo e isso claro que conta também. Eu não consigo exatamente dizer “isso ou aquilo esta diferente”, até porque estou dentro do furacão e pra mim tudo acontece naturalmente. Acho que as músicas do disco anterior talvez fossem mais longas, com passagens mais estendidas, e esse pode ser visto como mais “direto” por algumas pessoas. O tempo das canções é uma diferença clara, pra mim.

FB: Tempo em que sentido? Duração das faixas ou os ritmos compostos? Pergunto porque “Mils Crianças” é um trabalho muito rico do ponto de vista do ritmo. Não em relação aos compassos compostos (com destaque para “Joji”, que se não me engano é em 6/4), mas também quando vocês criam ritmos paralelos (a bateria vai prum lado, o baixo pro outro), e jogam com o andamento (como por exemplo na guitarra que introduzem “Hervi”)…
Granado: 
Eu quis dizer na duração das faixas mesmo. Elas são mais curtas.

Eu acho, e já disse antes, que o Hurtmold é uma banda basicamente percussiva. Ritmo sempre contou bastante nas nossas composições, e não só nos instrumentos de percussão. Acho que de uma maneira ou de outra, isso sempre esteve presente nos nossos trabalhos.

O Hurtmold é uma banda basicamente percussiva. Ritmo sempre contou bastante nas nossas composições, e não só nos instrumentos de percussão.

FB: “Mils Crianças” soa mais minucioso, detalhista e econômico, como se pode escutar em faixas como “Tomeletomele” e “Cleptociprose”, entre outras. Como funciona esta dinâmica de construção e estruturação das músicas? Mais de uma década depois, você possuem algo como um método de composição?
Granado: 
Acho que temos algo que se pode chamar de “método”. E isso consiste em não ter nenhuma ideia pré-concebida de como nenhuma canção deve soar. Trabalhamos juntos, os seis, o tempo todo em todas as músicas. Todas as ideias são esmiuçadas e mexidas. Ninguém, pelo menos até hoje, chegou com alguma canção ou estrutura já pronta. As músicas partem de ideias, fragmentos, conversas. A partir de uma pequena ideia todos começam a trabalhar, testar e tentar até que obtemos, ou não, alguma coisa que nos diz algo.

FB: Sobre seus trabalhos solo como Guilherme Granado: este ano assisti a uma apresentação no Walden e me surpreendi com o caráter espiritual que você imprime na composição e na interpretação — que de certa forma também está presente no Bodes e Elefantes. Há de fato uma inclinação pessoal místico-religiosa, ou seu interesse é puramente musical?
Granado: 
Eu me considero uma pessoa espiritual. Não no sentido religioso. Não tenho religião. Mas sei que, pra mim, em muitos sentidos, ouvir e fazer música ou arte me conecta com as pessoas e com o mundo de uma maneira que eu só posso dizer que é espiritual. Não faço isso conscientemente, não tento fazer de nada uma experiência “religiosa”, mas acho, sim que isso pode acontecer. Não diria que meu interesse é puramente musical. Não sei apontar com precisão meu interesse… Acho que as palavras “busca” e “conexão” são as que mais se aplica. Com quem esta vendo, ouvindo, com o que esta tocando, com a sala, com tudo.

FB: Sobre os próximos projetos: existe alguma previsão de lançamento, tanto de Guilherme Granado quanto do Bodes e Elefantes?
Granado: 
Não existe previsão. Tenho coisas gravadas, coisas compostas. É cada vez mais difícil lançar discos. Mas tem material sim, é só encontrar a melhor maneira de registrar e de colocar na rua. O São Paulo Underground tem um disco novo gravado e deve sair em algum momento em 2013.

FB: Quais os motivos que te levam a considerar que está cada vez mais difícil lançar discos?
Granado: 
Acho que um dos principais motivos é econômico mesmo. As pessoas não compram mais discos como compravam. E isso nos deixa, nós que produzimos os discos, numa posição de reavaliar como fazê-los e como produzi-los. Não estou reclamando ou criticando, só estou apontando um fato. Existem custos a serem levados em consideração, e isso às vezes faz com que você demore mais pra terminar um disco e colocá-lo na rua, seja qual for o formato (cd, vinil, download, etc.).

Me parece que o grande dinheiro ainda continua nas mesmas mãos e as pessoas talvez tenham inventado uma fantasia de que o grande mal (nesse caso, as grandes gravadoras) estejam perdendo força.

FB: Diante das turbulências e incertezas do mercado fonográfico, como vocês que fazem música independente estimam que será possível produzir e lançar discos a médio e longo prazo? Você concorda com vários críticos e estudiosos que afirmam que o formato “disco” está com os dias contados?
Granado: 
Realmente não sei como responder essa pergunta. O que me parece é que o formato “álbum” não acabou, a única coisa é que as pessoas não querem mais pagar por isso. Mas o formato long-play não é tão antigo assim também. Já foi diferente, e não há tanto tempo. O número de lojas de discos e selos independentes fechando e sumindo é um sinal (pra uns bom e pra outros ruim) do que vem acontecendo. E os artistas um pouco mais mainstream (ou nem tanto) procurando “patrocínio” ou “apoios” de grandes marcas ou corporações tambem é um sinal. Me parece que o grande dinheiro ainda continua nas mesmas mãos e as pessoas talvez tenham inventado uma fantasia de que o grande mal (nesse caso, as grandes gravadoras) estejam perdendo força. Mas, sinceramente, qual é a grande diferença entre a Sony ou a Universal e a Nike, Coca-Cola, Red Bull ou algo do tipo? Dito isso, é muito legal ver que as pessoas tem acesso à música de uma maneira rápida. Mas também existem muitas meias-verdades e ilusões sobre a “democratização” da música por causa da internet, me parece. Vamos ver o que acontece, realmente nesse momento tudo parece em aberto

FB: E para terminar: o que mais te chamou atenção na música dos últimos meses? Você toparia dizer o que mais te agradou musicalmente em 2012?
Granado: 
Não tenho acompanhado muitas “novidades” ultimamente. Acabo ouvindo e procurando as coisas de sempre pra mim. Mas em 2012 vi muitos shows bons, dos meus amigos. M. Takara, Response Pirituba, MDM, Chankas, Rodrigo Brandão, Objeto Amarelo me trouxeram belos momentos no ano. Gostei muito do disco do Glenn Jones (não sei se saiu esse ano), Pusha T, os discos dos meus amigos Josh Abrams Natural Information Society, Doug McCombs & David Daniell, o Pulsar Quartet do Rob Mazurek. Ah, tem EP do Bonnie Prince Billy também [Now, here’s my plan].

Entrevista publicada originalmente no blog Matéria.