Almendra: o rock numa casca de noz

Em 1969, um jovem grupo argentino mesclou tradições locais e harmonias típicas do rock inglês, resultando num dos álbuns mais clássicos da história do rock em espanhol.

Seria muito bom começar um texto em português dizendo que a obra de Luis Alberto Spinetta dispensa apresentações. Afinal, na Argentina seu status é de mito e guia musical para todas as gerações seguintes. Em 2015, infelizmente, ainda não é o caso. Mas aos poucos é possível perceber aqui e ali a reverberação da música dos nossos vizinhos na música brasileira – há algum tempo por meio dos Paralamas ou mais recentemente em artistas como Vanguart ou Moska, que reverenciam abertamente a obra de Spinetta, Charly Garcia e outros grandes nomes de lá. Mal comparando, na Argentina, Spinetta está como Os Mutantes ou Raul Seixas estão para o Brasil. Não foi o pioneiro do rock no país nem o primeiro a ter êxito comercial com o estilo, mas sim a expressão mais acabada e original de uma novidade musical estrangeira que antes era apenas imitada pelos seus conterrâneos.

Rock em espanhol, com sua métrica e referências poéticas próprias

O primeiro disco de Almendra é o lugar perfeito para começar a jornada pela obra de Spinetta. Não apenas por ser seu início, mas porque, aqui, seu talento natural como compositor se apresenta da forma mais simples e translúcida possível. As cores das melodias e harmonias se revelam mais vivas e a paleta emocional das canções se mostra menos mediada pela experiência e autoconsciência que inevitavelmente aparecem com a idade. Quando os primeiros singles da banda foram lançados, Spinetta, Edelmiro Molinari, Emilio Del Güercio e Rodolfo García tinham entre 18 e 21 anos. Apesar da pouca idade (e talvez por causa da audácia da juventude), o quarteto pega emprestada a elasticidade do blues, raiz da maior parte da música norte-americana, e a mescla, sem muito pudor, com as tradições melódicas locais (a zamba e o tango) e as harmonias típicas do rock inglês (Beatles, Zombies etc). O resultado, que poderia ser apenas um pastiche mal arrumado de estilos, é um amálgama coerente e original dessas várias influências. Aqui, não há afetações anglófilas, não há “iê iê iê”. Há, sim, rock em espanhol, com sua métrica e referências poéticas próprias.

“Almendra 1”, lançado em 1969, começa com “Muchacha (Ojos de Papel)”, clássico absoluto e uma das canções mais famosas da música argentina. Escrita por Spinetta para Cristina Bustamante, sua namorada de adolescência, “Muchacha” transborda de sentimentos e da descoberta da sensualidade em suas várias facetas, a ponto desses dois mundos, o sentimental e o sensitivo – teoricamente separados – tornarem-se indistinguíveis.  Musicalmente, a forma como Spinetta utiliza uma base folk universal e a tradição lírica local precede em alguns anos a abordagem do Clube da Esquina, no Brasil.  Além de canções de amor, como “Muchacha, há um trio de canções mais explicitamente ligadas ao rock e até ao jazz- “Ana No Duerme”, “Color Humano” e “A Estos Hombres Tristes”. A mais impressionante delas, “Color Humano”, é uma jam de nove minutos composta por Emilio Del Güercio que não perde nada para o Neil Young and Crazy Horse da mesma época.

Há também temas estranhamente adultos para músicos tão jovens. É de causar espanto que, em meio a canções tão vivas e fisicamente exigentes, o quarteto apresente reflexões serenas sobre a infância recém-vivida (“Plegaria Para un Niño Dormido”) e sobre a passagem do tempo em geral – “Figuración”, que é o exemplo mais claro do uso da tradição musical local, não deixando duvidas que só poderia existir intimamente ligada à língua espanhola e à tradição musical que a acompanha. “Laura Va” fecha o álbum como se fosse uma mistura melancólica de “She’s Leaving Home”, “Eleanor Rigby” e a gaita tipicamente argentina.

almendra-125297No ano e meio anterior ao lançamento do debut, a banda lançou vários singles. E são todos excelentes, principalmente “Campos Verdes”, “Tema de Pototo (Para Saber Como Es La Soledad)” e “Hoy Todo El Hielo En La Ciudad”. “Tema de Pototo” já contém, ainda que timidamente, a complexidade melódica e harmônica empregada em “Almendra 1” e suas variações dinâmicas dentro da mesma canção. “Hoy Todo El Hielo En La Ciudad” segue na mesma linha e “Campos Verdes” pode ser entendida como uma “Village Green Preservation Society” dos pampas, refletindo um sentimento talvez ubíquo àquela época: o de que as coisas estavam mudando rápido demais e nem sempre para melhor.

E se a sociedade e a cultura dos anos 1960 como um todo estavam a se transformar numa velocidade que causava confusão mental em muita gente, com a música daquela época não foi diferente. Imbuídos de um espírito de aventura e de que tudo era permitido, muitos músicos embarcavam e pulavam fora de ondas musicais sem muito critério e sem culpa – vide Rolling Stones, Byrds, etc. Alguns, como Almendra, ainda que não alheios, porém evitando os modismos, conseguiram integrar organicamente esse turbilhão de influências e se apropriar (no sentido de tornar-se dono) delas rapidamente. A evolução da banda entre o lançamento destes singles e seu primeiro álbum mostra isso claramente.

Em “Almendra 1”, Spinetta e seus parceiros conseguem a rara proeza de soar como o que havia de melhor em sua época e, ao mesmo tempo, definitivamente diferentes dos seus pares nos países anglófonos. Em trabalhos posteriores, em bandas como Pescado Rabioso, Invisible, Spinetta Jade e em seus discos solo, Spinetta se solidificaria como um dos mais talentosos guitarristas e compositores de sua geração.