Os Tincoãs: Atlântico em Mão Dupla

A partir dos anos 1970, os Tincoãs começaram um processo musical de inversão do fluxo histórico África-Brasil que viria, muitos anos depois, desembocar na atual relação entre músicos brasileiros e africanos.
POR Caio Csermak

É muito comum ler em críticas sobre astros do rock ou do pop a valorização de músicos e grupos que estiveram “à frente do seu tempo”. Ainda que a música brasileira apresente alguns destes exemplos, acredito que são mais relevantes por aqui grupos e músicos que têm a capacidade de sintetizar em suas trajetórias gêneros e gerações musicais inteiras. Este é o caso d’Os Tincoãs: formado nos anos 1960 em Cachoeira – cidade do Recôncavo Baiano de forte presença negra e reconhecida por seu patrimônio cultural material colonial e imaterial afro-brasileiro -, o grupo começou a carreira como um trio vocal de bolero, em um estilo próximo ao do Trio Irakitan. Aí está uma ironia, pois se o bolero é um gênero caribenho que mescla elementos africanos e espanhóis, seu consumo no Brasil se deu especialmente entre classes médias e altas brancas, sendo por décadas um dos principais gêneros dos bailes dos principais clubes sociais. Tal como o jazz, tenho a impressão de que gêneros musicais de raiz africana produzidos alhures são mais palatáveis para o consumo de elites brancas, tendo recebido maior atenção das gravadoras ao longo do século XX do que os gêneros afro-brasileiros – com exceção ao samba, claro. De modo que o primeiro disco d’Os Tincoãs, “Meu Último Bolero”, de 1961, foi um álbum de boleros que não obteve sucesso e que especialmente não conseguiu emplacar o trio no circuito do bolero no Sudeste.

Após este primeiro fracasso, o integrante Erivaldo se desligou do grupo, cedendo lugar a Mateus Aleluia, nome ao qual voltarei mais tarde. Assim, além de Mateus, o grupo contava ainda com Heraldo e Dadinho, ambos já falecidos. Os Tincoãs demoraram mais de uma década para lançar seu próximo disco, “Os Tincoãs”, de 1973. Os anos 1960 assistiram a uma galopada do processo de apropriação do samba pelas elites culturais brasileiras: se já nos anos 1930 Francisco Alves se apropriava/gravava canções de Ismael Silva, foi no fim da década de 1960 e nos anos 1970 que o samba caminhava a passos largos para uma elitização e espetacularização que culminaria simbolicamente na construção do sambódromo da Marquês de Sapucaí nos anos 1980. Foi também no fim dos anos 1960 que a bossa nova se estabeleceu internacionalmente como a consolidação de uma música brasileira sofisticada e os músicos próximos à Tropicália reinventaram as fronteiras do samba enquanto canção popular. Curiosamente, foi também na década de 1970 que grandes nomes do samba tido por não-sambistas como “samba de raiz”, já em idade avançada, gravaram seus primeiros álbuns: Nelson Cavaquinho o fez em ’70 e Cartola em ’74, por exemplo.

não é de se estranhar que um grupo de negros do Recôncavo Baiano que misturava bolero com samba de roda e música afro-religiosa tenha passado desapercebido aos ouvidos sudestinos de então

Mas meu objetivo não é falar de samba e, sim, tentar entender em que contexto se insere o disco homônimo do grupo, “Os Tincoãs”, de 1973: entre os muitos gêneros e movimentos culturais que compunham uma complexa disputa narrativa pela identidade nacional brasileira e pela inserção no mercado fonográfico em tempos de endurecimento da Ditadura Militar, o samba era aquele que costurava de fora a fora a produção musical brasileira e o que se falava sobre ela – da crítica musical a discursos políticos. Por isso, na contramão de baianos como Caetano Veloso e João Gilberto, não é de se estranhar que um grupo de negros do Recôncavo Baiano que misturava vocais de bolero com samba de roda e música afro-religiosa tenha passado desapercebido aos bem educados e engajados ouvidos sudestinos de então: as pontes entre canção popular brasileira e música negra eram completamente dependentes da linguagem do samba urbano carioca para serem operantes. Creio ser este um dos principais motivos pelos quais Os Tincoãs continuaram ilustres desconhecidos na música brasileira até os anos 2000. Apesar deste silêncio de mais de 40 anos, recentemente Os Tincoãs têm reaparecido na cena musical brasileira. Entretanto, as referências são limitadas, orbitam em torno de algumas regravações e estas se limitam especialmente a uma música, que é “Deixa a Gira Girar” – regravada por Marcia Castro e Bixiga 70, por exemplo -, canção que abre o álbum em questão e que é uma adaptação de Dadinho e Mateus Aleluia para uma canção de domínio público.

Em “Os Tincoãs”, os arranjos vocais de bolero continuaram a ser uma marca registrada do grupo. As canções e os arranjos instrumentais, contudo, passaram a beber da riqueza da musicalidade negra do Recôncavo Baiano, girando, sobretudo, em torno de músicas inspiradas em pontos de religiões afro-brasileiras, como o Candomblé e a Jurema (como “Deixa a Gira Girar”, “Saudação aos Orixás”, “A Força da Jurema” e “Obaluaê”) e sambas de roda (como “Embola Embola” e “A Raposa e o Guará”). Com o álbum de 1973, a sonoridade d’Os Tincoãs tornou-se singular: nada de parecido – nem mesmo a Orquestra Afro Brasileira – havia sido feito antes deles e por muitos anos a música afro-baiana e seus representantes continuaram a ser ignorados no resto do país, ainda que figuras como Dorival Caymmi, tropicalistas e Novos Baianos não. Foi apenas nos anos 1980 que novas combinações entre samba de roda, música afro-religiosa e reggae resultaram em nomes precursores do samba-reggae e do axé – como Jerônimo e os blocos afro Olodum e Ilê Ayê -, dando à música afro-baiana uma dimensão nacional, logo apropriada de modo violento pelo mercado das grandes gravadoras no seu último decênio de auge e controle da produção musical do país.

o grupo sintetizou algumas décadas da história da música afro-baiana, refazendo as pontes entre a música tradicional afro-brasileira e a canção popular

Não bastassem as inusitadas pontes criadas entre bolero, música afro-religiosa e samba de roda – chegando a um formato inusitado de canção afro-brasileira – Os Tincoãs foram mais fundo: com a morte de Heraldo em 1975, o grupo variou de formação mas seguiu criando e gravando, o que os levou em 1983 a Angola, para o trabalho em projetos da Secretaria de Cultura do país com o objetivo de compor e pesquisar sobre o trânsito cultural entre Angola e Brasil. O grupo permaneceu na ponte Angola–Bahia por cerca de 20 anos, chegando ao seu fim em 2000, com a morte de Dadinho. Mateus Aleluia, no entanto, segue como um nome relevante – e de pouca expressão – da música brasileira. Em 2009 lançou o CD “Cinco Sentidos”, no qual revisita alguns clássicos do grupo (como “Lamento às Águas” e “Cordeiro de Nanã”) e traz uma série de novas composições, entre elas “Homem! O Animal que Fala”. Nesta composição de envergadura épica, arranjo para orquestra repleto de metais e percussão erudita e quase 10 minutos de duração, Mateus passa com naturalidade pelo surgimento físico da humanidade na África e pelos períodos da chamada “evolução” humana e o genoma, chegando às suas memórias de Cachoeira repensadas à luz dos anos vividos em Angola.

É uma composição, no mínimo, inusitada. Nela, Mateus afirma: “Cachoeira, foi de Luanda que entendi sua realidade/ancestralidade”. Esta frase resume o significado histórico d’Os Tincoãs na música brasileira: o grupo sintetizou em seu trabalho algumas décadas da história da música afro-baiana, refazendo tanto as pontes entre a música tradicional afro-brasileira e a canção popular como invertendo o trânsito histórico África -> Brasil para a ponte Brasil -> África, a qual apenas nos últimos anos têm se consolidado na música brasileira. Foi na década de 2000 que artistas brasileiros – negros e brancos – foram além da herança da ancestralidade africana e passaram a pesquisar, dialogar e cooperar com artistas africanos da atualidade, fazendo com que o fluxo histórico África–Brasil comece a ser feito em ambos os sentidos. Os Tincoãs começaram este processo há algumas décadas: não estiveram à frente de seu tempo, mas sim estiveram de modo tão forte em seu próprio tempo que catalisaram um processo que viria a fincar raízes na música brasileira muitos anos depois.