Entrevista: SILVA

SILVA passou os últimos dois anos sendo chamado de “promessa”, enquanto navegava à sua maneira esse mar turbulento que é a indústria fonográfica do país. Ainda em busca de parceiros, o jovem de Vitória quer mesmo é seguir o caminho do meio na música brasileira.

É uma típica tarde de outono no Rio de Janeiro quando Lúcio Souza, o SILVA, aparece por de trás da porta de um elevador de um hotel em Ipanema. De sorriso largo, ele aparenta estar ainda mais feliz do que sua música indica, talvez fruto de uma apresentação consagradora ao lado dos novos amigos Céu e Kassin com curadoria de Nelson Motta que se repetiria horas depois.

Nos dois anos desde o lançamento de seu primeiro EP, SILVA tem sido a resposta fácil e óbvia para a pergunta “qual é a nova promessa da música brasileira?” por motivos tão óbvios quanto. Seu trabalho, mostrado com mais detalhe no álbum “Claridão”, é algo raro no cenário indie nacional justamente por não caber ali: é música pop sem vergonha de sê-la, e é também filha de um tempo em que todos os sons (os de ontem, os de hoje, os de amanhã) cabem numa mesma canção.

Num papo de quase uma hora, SILVA repassa com Fita sua trajetória até aqui, fala da doçura de suas canções (e das do Guilherme Arantes) e explica como tem conseguido trilhar seu próprio caminho sem perder a essência.

Nota do editor: essa entrevista foi feita em 27 de abril de 2013, horas antes do show que SILVA apresentou no festival Sonoridades, no Oi Futuro Ipanema, ao lado de Kassin e Céu. O texto era para ter sido publicado antes, então algumas informações podem parecer datadas. Para manter a coerência do texto, preferimos publicar a entrevista sem grandes edições.

Fita Bruta: Lúcio, já te perguntaram muito isso, é uma questão que vem e volta pra você, mas eu queria que você contasse mais uma vez, com mais detalhes, como foi a sua infância e adolescência e como isso acabou te levando pra música.
SILVA: Minha mãe é professora (eu sempre falo da minha mãe, sempre começo falando dela), ela é que foi a responsável por eu e meus irmãos estudarmos música, ela quase que obrigava a gente a ir pras aulas. Eu comecei a ser “musicalizado” muito novinho. Ela me levava para a escola que ela dava aula de música com dois anos. Eu não tinha babá, então era a forma dela deixar a gente ocupado. Então eu comecei muito novo. Quando eu comecei a ir pra escolinha, eu tinha dois, mas ainda não fazia aula de instrumento específico, só fui fazer isso lá pros seis. E tinha o irmão mais novo da minha mãe que morava com a gente, que é pianista e ele do “tipo” concertista, que estuda oito horas por dia, maluco. E a gente voltava pra casa e ele estava estudando o dia inteiro. A gente teve muita influência dele. Ele botava a gente pra sentar, às vezes obrigava mesmo e dizia “ouve isso aqui”. “Ah, é chato” e ele dizia “aprende isso aqui, ouve essa parte”. Foi ele que fez a gente ouvir as coisas talvez mais difíceis. E aí foi isso até hoje, não teve nenhum momento que eu parei de estudar ou tentar um instrumento novo. Quando eu estava entediado com o violino, eu entrava numa aula de guitarra. Mas aí eu já não tinha tanta paciência depois de tanto tempo estudando violino e piano pra pegar um instrumento novo e pegar naquela técnica.

FB: Você chegou a tocar na noite, fazer algo antes do trabalho autoral?
SILVA: Cheguei sim. Essas coisas que eu acho que todo músico acaba passando, né. Eu tinha essa vontade de ser músico, ou tocar em orquestra. Não sabia o que ia rolar, mas sabia que ia trabalhar com isso, talvez porque isso era o que eu sabia fazer melhor. Cheguei a tocar na noite pra caramba, principalmente quando eu morei na Irlanda, porque era a o meu trabalho mesmo, de tocar em tudo quanto é canto. E também toquei em casamento, que era o drástico, porque eu nunca gostei. Mas era aquela coisa, eu estava com 17 anos, a fim de ganhar uma grana pro final de semana. Começou assim, apesar de eu não gostar. Casamento é meio chato, aquela coisa muito solene.

FB: Você chegou a ter alguma relação com música cristã. Como foi isso?
SILVA: A formação da minha família é toda protestante. Meu avô, que morreu ano passado, era o cara que eu tinha mais contato e era o cara que me deu meu primeiro violino, que eu uso até hoje, que eu adoro. Ele sempre investiu muito em mim, dizia “vai lá pra Belo Horizonte estudar com o professor que é melhor que esse que tem aqui em Vitória”. E esse meu avô foi pastor batista por muitos anos. Então é um cara que me ensinou a ter muito respeito por tudo. Ele era um cara formado em filosofia, tinha uma mente diferente, sabe? Ensinava a gente a questionar as coisas. Até as coisas que ele achava absolutas, como a fé dele. Ele ensinava a questionar e achar os nossos próprios caminhos. Então eu tive esse background e pra mim uma coisa muito foda também de ter crescido nesse meio batista é de tocar tudo que é instrumento. Eu comecei a tocar com dez anos, me chamavam pra tocar, pra pegar uma música que eu nunca tinha ouvido na vida. É uma vivência musical de qualquer forma. Apesar de depois, quando eu fiquei mais velho, eu já não tinha tanta ligação. Pra mim foi uma questão importante. Claro que, fui morar na Irlanda, convivi com muitas pessoas diferentes de mim, na Europa tem muito ateu, tive amigos com tudo quanto é tipo de cabeça e isso acabou me mudando muito, mas ainda é uma coisa que eu respeito muito, que me ensinou muito. Até de cantar afinado, de fazer outras vozes.

Eu lembro uma época, quando era mais novo, que eu ficava “pô, Chico Buarque é muito foda”, mas você não vai ser o Chico Buarque, sabe? Desiste.

FB: A primeira vez que eu ouvi alguma coisa sua, não lembro se foi em 2009 ou 2010, um amigo meu de Vitória [Rafael Abreu, um dos editores do Fita] tinha passado seu MySpace, quando ainda era só Lúcio. Tinha só uma demo de “A Visita”. Eu queria que você contasse como foi essa fase pré-SILVA.
SILVA: Legal! Acho que ninguém nunca me perguntou isso. Eu fazia coisas em casa enquanto eu estava com uma porrada de gente. Eu tocava em casamento um monte de música chata que eu não gostava, e tocava em orquestra, era uma parte muito legal, mas tinha umas partes chatas também. E eu chegava em casa e tentava fazer minhas coisas, mas sem nenhuma pretensão mesmo, sem demagogia. E aí eu botava na internet pros meus amigos ouvirem, criei o MySpace, mas nada assim “Vou criar o Myspace e vou ter uma carreira”. E na Irlanda que eu comecei a pensar em fazer um projeto pra mim, vendo tanta gente fazendo banda, fazer música que eu ia curtir fazer. E saiu “A Visita” lá na Irlanda, em 2009. E começaram a sair outras músicas, que já tinham uma coisa eletrônica. Não sei o que eu tinha na cabeça na época, acho que eu ouvia muito Justice, aquele primeiro disco. Era a minha tentativa de fazer as coisas com aquela estética. Aí fui montando as coisas. Quando eu voltei pro Brasil, eu trouxe os equipamentos que eu tinha juntado uma grana pra comprar e comecei a gravar em casa. Lá na Irlanda mesmo eu vi uns dos primeiros shows do Bon Iver e de uma galera assim que hoje é muito grande, mas na época não era tanto. Era uma galera que gravou em casa, que tem uma estética parecida com o que acabei fazendo. Gostei pra caramba, era algo que me emocionava, mas não era uma grande produção. Aí foi nessa que eu tive essa ideia de comprar as coisas e levar pra casa pra tentar fazer.

FB: Eu fui ouvir você de novo um pouquinho antes do lançamento. O Tomás [Pinheiro, DJ e dono do Entretenedor n’O Esquema] tinha me mandado uma não-masterizada de “12 De Maio” e eu fiquei em dúvida se era a mesma pessoa. Como foi essa transição de uma coisa que é muito orgânica, que é “A Visita”, pra uma coisa como “12 de Maio”?
SILVA: Essa música é fruto de eu ter tido contato com coisas que esteticamente não eram tão orgânicas. Quando eu fui pra Irlanda, em 2009, deu aquele boom do dubstep na Europa e eu comecei a ouvir e achar “pô, que coisa louca”. Eu nunca tinha ouvido coisas desse tipo. Eu tinha um pouco de preconceito de músico de formação erudita, sabe? Preconceito com música de clube, música eletrônica. Mas assim que eu comecei a ouvir eu pensei “isso é muito bom”. É difícil de fazer, os timbres são trabalhosos, tem umas sacadas fenomenais. Aí eu comecei a abrir minha cabeça pra isso e quis colocar nas minhas coisas, quis misturar. E quanto mais eu fui ouvindo esse tipo de música, mais eu fui me identificando. Claro que tem coisas que eu disse “não”, mas eu fui escolhendo as coisas com que eu mais me identificava, e acho que é algo de também vem dessa vontade de tentar ser contemporâneo de alguma forma. Eu lembro uma época, quando era mais novo, que eu ficava “pô, Chico Buarque é muito foda”, mas você não vai ser o Chico Buarque, sabe? Desiste. O cara viveu um Brasil muito foda, é diferente. Eu tentava fazer uma música que se relacionasse com o que eu ouvia fora do Brasil também, que tivesse a ver com o meu tempo.

FB: Quando você lançou o EP, o que você tinha na cabeça? Você achava que ia acontecer alguma coisa? Qual era a sensação?
SILVA: Eu lancei porque eu estava curtindo. Se não estivesse curtindo, eu não teria lançado. Eu sou meio… não é medroso, é cuidadoso mesmo. Não queria lançar qualquer coisa. Não sabia o que ia rolar. Eu lembro que eu mostrei para uns amigos, uma galera que eu conhecia e foi uma coisa meio “e aí? O que vocês acham?”. E todos eles falaram “maneiro, bota na internet”. E as coisas começaram a andar.

FB: Eu acho que vi os seus três primeiros shows. Ou então, de quatro, eu vi três. Na Comuna, no Sónar e depois no Oi Futuro. E os três tiveram uma formação totalmente diferente. Como foi esse processo de passar do estúdio pro ao vivo?
SILVA: Isso aconteceu primeiro por uma questão prática mesmo. É muito difícil achar músico. Sério! Eu estou vendo isso agora, que é muito difícil de achar. Achar músico contratado, que toca sol e dó, você acha. Mas achar pessoas legais, pra curtir o que você está fazendo é difícil. Então, em Vitória é difícil achar isso e os meus amigos aqui do Rio, eram do Rio! Era difícil pra ensaiar, ia ficar caro porque eu teria que vir pra cá pra montar. Aí eu pensei em assumir o sample ao vivo mesmo, eu uso trilha. A gente tenta fazer o máximo que a gente consegue ao vivo, mas é difícil com dois só. Aí eu falei “vou começar a ensaiar com o Hugo e tentar estruturar em termos técnicos pra fazer só nós dois”. Foi isso. É até uma questão econômica também. Pro contratante fica mais fácil e uma equipe menor, quando precisa viajar não é aquela equipe gigantesca que inviabiliza o show. Acho que foi uma forma de começar com calma, pequeno mesmo.

Só que hoje em dia não está mais na fase do certo ou errado tecnicamente. Se funcionar, se ficar bonito, beleza. Eu tive muito essa dificuldade de mostrar pra algumas pessoas em estúdio e o cara dizer “essa batida não mistura muito com esse baixo, tá meio estranho”. Mas é exatamente assim que eu quero, sabe?

FB: E como foi quando a Som Livre entrou em contato? Como está sendo essa experiência de ser um artista lançado por uma grande gravadora?
SILVA: Eu sempre sou honesto demais quando eu falo de gravadora, porque é uma empresa, sabe? e você está com o seu trabalho ali no meio. Tem várias pessoas, vários interesses, cabeças diferentes. Às vezes eu vou pensar que eu vou fazer um projeto super legal, e a pessoa que está lá, que é experiente, ou então que já desacreditou do mercado, vai dizer “Não, cara, isso aí não dá”. Então tem essas dificuldades de ser uma empresa mesmo, de você ter que se relacionar com muitos interesses. O que pra mim foi legal, que eu não poderia reclamar, é que eles me deram muita liberdade de poder criar. Tanto que no “Claridão”, eu já tinha cinco músicas do EP que eles já tinham gostado e aprovado, e as músicas novas eu entreguei prontas já. Não teve aquela coisa de entregar antes pra eles ouvirem, ou pedirem pra tirar uma música, ou pedirem pra gravar uma coisa do Caetano. Eles ouviram e falaram “Fechou!”. Eu me senti muito respeitado. Fiz a capa com quem eu queria, mixei com o Jeremy [Park], e masterizei com o cara que eu gostava. Não teve nada de “tem que faz com o Ricardo de não-sei-o-que, que é o cara que faz todo mundo no Brasil”. Então, tem sido legal pra mim.

FB: Existe – e eu faço a pergunta sem levar em conta nenhuma influência de gravadora – um desejo ou até uma “autopressão” de alcançar um público maior com seu trabalho?
SILVA: Sabe quando você não pensa muito nisso? Eu realmente não penso muito nisso, mas quando você assina contrato com uma gravadora você automaticamente vai pensar nisso. Alguém vai comentar sobre isso com você e você vai dizer que nunca tinha pensado nessa coisa mais mercadológica. E eu sempre gostei dessa coisa de produção, minha vontade mesmo quando eu era garoto era ser produtor musical. Então, eu acho muito legal essa coisa da acessibilidade, quando uma pessoa que não tem nada a ver com o meio que eu acho que estou inserido me fala “Pô, adorei sua música”. Ou uma pessoa mais velha, ou uma pessoa de outro lugar, outra formação. Eu acho muito legal, não fico assim “Ai, meu trabalho está ficando conhecido, perdeu a graça”. Tem um pouco disso no meio underground e acontece em todo lugar. Na Irlanda, meus amigos eram assim também. Se eu botasse uma música que era mais pop, eles torciam um pouco o nariz. Eles eram meio roots, queriam ouvir Muddy Waters e a galera do início do blues. Mas eu falava “Pô, tem que ouvir o que lançou esse ano também”. Porque vai ser sempre assim: a gente vai chegar em 2030, vai olhar pra trás e dizer que “aquela foi a melhor fase”. Rola um saudosismo, que eu sou muito tendencioso a ter com essa formação erudita, mas eu tento não ter. Eu fico assim “Pô, vamos olhar pra frente, valorizar o que se faz agora”. Essa coisa de todo mundo fazer música no seu computador em casa, fazendo trabalhos super interessantes sem ir para aqueles grandes estúdios que tinham antigamente, gravar em fita, aquela complicação toda, que eu acho muito foda. Mas tem que olhar as coisas boas que tem hoje em dia também. As facilidades de produzir, a mobilidade de trazer meu laptop e trocar uma ideia aqui e querer gravar.

FB: O que te inspira a compor? Como você trabalha, como é o processo?
SILVA: Eu estou começando a achar o meu processo, porque antes era uma coisa um pouco aleatória, de esperar. Sabe quando você confia na inspiração? Mas se for ficar assim eu vou lançar um disco a cada 15 anos. [risos] Então, por causa da própria correria, eu tô tentando levar de uma forma mais profissional mesmo. Sabe o dia que você não tá no melhor dia, mas tentar fazer alguma coisa, criar alguma ideia, mexer com sons, levar como trabalho mesmo. Um ofício, mesmo. E pra mim não é fácil porque é uma coisa que eu nunca tive antes. Eu estou tentando me disciplinar nesse sentido, para ver se saem mais coisas também.

Sabe quando você é criado a vida toda dentro de um meio e você não faz parte daquilo? Então, quando você se vê fora desse meio, você está meio sozinho.

FB: O EP e o disco foram mixados e masterizados lá fora. Por que você escolheu passar tudo lá pra fora e por que você escolheu essas pessoas? O que você estava buscando?
SILVA: Eu acho que a primeira coisa é que em muitos casos fazer isso lá fora fica muito mais barato. O fator econômico com certeza foi um dos motivos principais, mas houve o fator estético também. Vou dar um exemplo de um estúdio em Vitória, que é o que eu mais conheço. Você chega lá e vai mostra “12 de Maio” pro cara e ele vai mixar e masterizar com a cabeça dele.  Isso eu tô falando sem preconceito, só estou falando como gênero mesmo, o cara está acostumado a trabalhar assim e está acostumado a ouvir, por exemplo, Beth Carvalho, gêneros muito marcantes. Só que ele não ouve coisas que eu estou acostumado. Aí você vai mostrar uma banda e ele vai dizer que isso não faz, que o reverb na voz é errado tecnicamente. Só que hoje em dia não está mais na fase do certo ou errado tecnicamente. Se funcionar, se ficar bonito, beleza. Eu tive muito essa dificuldade de mostrar pra algumas pessoas em estúdio e o cara dizer “essa batida não mistura muito com esse baixo, tá meio estranho”. Mas é exatamente assim que eu quero, sabe? E isso porque eu considero o que eu faço extremamente pop, não é nada que se diga “nossa, que música instrumental difícil”. Mas é a mistura que o cara não está acostumado e acaba te deixando meio desanimado. Aí quando eu entrei em contato com esses caras… o Jeremy Park, que fez o “The Year Of Hibernation” do Youth Lagoon, o cara foi um doce, sabe? Altos emails falando “Que legal, primeiro trabalho no Brasil que eu faço”. Super empolgado! Ficamos o dia inteiro mandando email, ele foi super atencioso com todos detalhes, que é uma coisa que eu não tinha aqui ao vivo, quando eu ia pra um estúdio caro. E por um preço acessível, cabeça legal. Assim, eu escolhi também porque eu não conhecia muita gente, só fui conhecer o Kassin agora. O cara tem uma cabeça muito legal. Instrumentos pra todos os lados, uns órgãos que eu nunca vi na vida. Ele é muito acessível, tem muito bom humor, sem preconceito nenhum com música. Eu acho isso muito legal. Eu só conhecia essa galera de Vitória, então acho que o lance de ter escolhido os gringos não foi porque eu pago pau pra gringo e tudo o que gringo faz é bom, mas porque eu não tinha referência de pessoas que podiam me ajudar, então acabou sendo uma saída boa.

FB: Vitória não é conhecida por ter uma tradição em música autoral. De certa forma, me parece que você ainda não achou uma galera. Você ainda é uma ilha tentando fazer pontes com outras pessoas. Você se sente dessa maneira?
SILVA: Me sinto para caramba. Mas eu não culparia a cidade por isso. Eu acho que eu vim de um meio que as pessoas não me entendiam. Do meio religioso, do meio da música erudita. As pessoas não me entendiam. Sabe quando você é criado a vida toda dentro de um meio e você não faz parte daquilo? Então, quando você se vê fora desse meio, você está meio sozinho. Eu não vim desse meio de meio em que é comum ter bandas, ter uma galera. Então, eu acho que pra mim isso bom, por me deixar livre de muita influência externa. Eu ouvi muita coisa em casa, sozinho. Eu tentava fazer as coisas sozinho e isso ajudou a criar meu som. Mas é algo pode ser meio entediante, às vezes também.

FB: E como surgiu o convite do Nelson Motta pra fazer esse show de hoje?
SILVA: O convite do Nelson foi através da Bebel Prates, que fez a assessoria do “Claridão”. Ela é muito amiga do Nelson e me disse “Ele já ouviu algumas coisas suas e gostou pra caramba. Assina um disco e me dá que eu vou me encontrar com ele.” Então, ela entregou pra ele. Aí ele curtiu e mandou um email falando um monte de coisa e eu fiquei pensando “Caralho, é o Nelson Motta!”. O cara é um ídolo, né? Meu irmão, coincidentemente, tinha comprado “Noites Tropicais” na mesma época. É um livro que você lê e pensa “Eu não sabia que essa cara era tão foda”. Aí o Diogo, que é empresário dele, foi no meu show no CCBB em janeiro para dar uma checada. E foi bom que eu estava numa fase que eu tinha voltado dos Estados Unidos, e eu, o Hugo e o técnico estávamos empolgados, pensando em fazer um som ao vivo melhor do que a gente já estava fazendo. Fizemos um show muito legal e o Diogo curtiu pra caramba.  Aí fechou.

FB: E foi ele que escolheu a Céu e o Kassin?
SILVA: Não, fui eu. Ele queria chamar o Guilherme Arantes, queria misturar alguém de outra geração, pessoas mais distantes. E eu falei, “Caramba, que foda, o Guilherme Arantes!”, mas ele estava numa fase de terminar disco para começar turnê e disse que não poderia. Aí Nelson sugeriu outros nomes e eu perguntei: por que não a Céu e o Kassin? Eu tinha acabado de gravar uma música [“Amor Pra Depois”, lançada em agosto de 2013] com o Kassin, em que ele tocou baixo. Eu gostei demais dele, é um cara super bem humorado, vibe boa. A Céu eu não conhecia, mas, muito sinceramente, desde “Vagarosa” ela é minha cantora favorita no Brasil. O jeito como ela conduz a carreira, escolhe muito bem onde aparecem as músicas dela. A postura dela é demais, não tem nada de marra, sabe? Uma atitude toda “Pô, que legal que você está gostando do que eu estou fazendo”.

FB: Como foi o ensaio?
SILVA: Foi muito legal. O Kassin com ela foi muito divertido, a gente ria pra caramba. Eu fiquei com medo de ficar muito sério, eu ficava tirando as notas certinhas, tentando samplear algumas coisas pra ficar bem parecido com o disco mesmo. E aí ele perguntava: “Como é que você fez esse baixo, você fez igualzinho ao do disco?!”. Mas foi divertido, eu fiquei meio bobo. Sabe quando você vê algum artista com quem você se identifica? Eu já conheci alguns artistas aqui do Rio que eu não sou fã, mas são artistas grandes. A pessoa é muito grande e você pensa “Caramba, não acredito que eu estou vendo essa pessoa”, mas eu não era fã da música. Com a Céu, foi tipo “Caralho, não acredito, eu conheço a Céu! A gente está tocando junto no ensaio!”. É a parte mais legal desse trabalho, quando você conhece alguém com quem se identifica. Aí ontem a gente estava passando o som e ela falou “Sabe que você me lembra muito eu mesma quando eu comecei? Eu entrava no palco de costas e era super tímida, eu tocava com click ao vivo, pra sair tudo certinho”. Ela disse “É muito legal ver isso. Eu me vejo para caramba em você”. Ela também lançou o primeiro disco com 24 anos. Então eu estou muito feliz de ter conhecido ela.

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FB: É engraçado o Nelson ter falado do Guilherme Arantes, que foi uma coisa que me chamou muito a atenção no show do Oi Futuro do ano passado. Eu ouvia as músicas novas e pensava “Isso é muito Guilherme Arantes!”. Me lembrou muito.  A minha mãe gostava muito dele e quando eu fui pra Som Livre, eu peguei aquele primeiro disco [“Guilherme Arantes”, de 1976] e eu fiquei completamente fascinado. E eu sinto muito dele em algumas coisas suas, mas eu nunca ouvi você falando sobre ele especificamente. É uma referência pra você?
SILVA: Na minha casa, eu tive acesso a coisas muito extremas. Eu morava com a minha avó, meu pai, minha mãe, então eu ficava ouvindo coisas muito antigas, como Ernesto Nazaré, que eu até sampleei. E tinha o fato de eu ser irmão mais novo. Meu irmão, [Lucas Souza, que também é empresário de Lucio e co-autor de algumas músicas de “Claridão”] que tem 30 hoje, era dessa geração que ficava ouvindo Legião Urbana, Paralamas, essas coisas. Então, esse meio dos anos 80, eu ouvia um pouco com o meu tio que tocava piano e escutava música pop. Eu até ouvia Guilherme Arantes, mas não tanto, eu ouvia só as mais famosas. Aí quando me associaram ao Guilherme Arantes, eu pensei “Que louco, que legal!”, porque não é um cara que eu tinha em mente…

FB: …aquela parte de “Falando Sério” em que você canta “O seu etéreo jeito de seeeeer” para mim é muito marcante, porque é muito parecido com várias coisas dele, na letra, na melodia.
SILVA: [Risos] É muito engraçado isso, né? Depois desse tempo todo, eu conheci o Camelo no ano passado e ele estava numa onda de trocar emails sobre discos brasileiros mais antigos que ele achava muito foda e que achava que eu deveria ouvir. Ele até falava assim “Desculpa se isso aqui você já conhece, só to falando as que eu mais gosto”. Aí ele me mandou o primeiro disco do Guilherme, com o Móto-Perpétuo. Esse disco é muito louco. Aí eu comecei a ouvir mais essas coisas do Guilherme e pensar “Pô, o cara é muito foda!”. Eu já achava ele foda, porque para fazer tanto hit quanto ele fez, tem que ser. E tem esse lado que é difícil, umas coisas mais difíceis de digerir mesmo. Arranjos super complexos, psicodélicos, muito fodas. Fora que eu acho que ele tem um astral muito foda.

FB: Você tem intenção, vontade de compor com outras pessoas ou até pra outras pessoas? Até agora você compõe só com o seu irmão ou sozinho…

SILVA: Vontade eu tenho, mas não sei se funciona. Eu tenho essa questão, porque é uma coisa muito pessoal. Mas agora que eu estou começando a conhecer o Kassin, a Céu mais de perto, o André [Paste] também, com quem eu sempre estou falando de música, trocando ideia “olha isso aqui, ouve isso aqui”…então eu não sei. Tem que rolar uma identificação, mas também tem uma questão uma prática na hora de você sentar pra compor a dois, que é o negócio de poder dar muito certo, mas também poder não dar. Eu tomo muito cuidado, porque a partir do momento que você faz um convite pra uma pessoa de fazer uma música junto e você começa a música e acaba não saindo como você esperava, fica chato né. Eu tento tomar cuidado para essa parte do relacionamento não ficar ruim.

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FB: Como foi essa música que você gravou com o Kassin?
SILVA: Essa música ia entrar no “Claridão” e acabou não entrando. “Amor Pra Depois”. Eu e Marcela Valle [Mahmundi] tínhamos feito a música em casa, só que eu não sabia se eu ia usar. A Marcela até falou “Pô, mas você não vai usar?” e eu falei “Não sei, vamos fazer um demo”. Só que quando o pessoal da Som Livre ouviu, eles disseram que tinham gostado muito da música, a estrutura dela. Porque a música tem um refrão, coisa que muitas das minhas músicas não têm. E aí eu falei que ia tentar gravar. Eu já tinha essa estética definida e eu pensei logo no Kassin. Foi minha primeira gravação em estúdio depois que eu lancei o disco. Eu usei o estúdio da Som Livre, com bateria e baixo, tudo bem orgânico. Foi diferente para mim também. Eu já vim com os arranjos prontos, mas não era sampler e sintetizador. É engraçado porque ela não tem nada a ver com “A Visita”, mas eu fiz quase que sequencial, em 2009.

FB: Desde aquela primeira vez que eu ouvi uma música, o adjetivo que me vinha à cabeça era “doce”. Eu sei que isso pode soar pejorativo, mas não é. E isso é uma opinião que eu recebo de várias pessoas, quando eu apresentei pra minha namorada ela disse “nossa, que doçura de música”. “A Visita” principlamente. O que você acha que na sua personalidade acaba levando isso para sua música? 
SILVA: As pessoas sempre me perguntam se esse tipo de adjetivo me incomoda de alguma forma. Eu acho que isso me incomoda quanto não tem um balanço de, tipo… quando a pessoa só quer ser fofa e não tem nenhum contrabalanço.  Mas é uma coisa que eu gosto muito, de ser melodiosa, sempre fui muito ligado com a música erudita. Eu sempre gostei daqueles caras que tem uma linha melódica pra você conseguir identificar e eu acho que a doçura acaba vindo disso, sabe?. Eu sou um cara tranquilaço, mesmo! Até meio zen [risos]. Acho que isso é uma parte da minha personalidade que eu acabo imprimindo na música. Claro que eu não sou assim o tempo todo, mas eu geralmente sou assim.

FB: É interessante que você não tenha problema com isso, porque tem uma série de cantores que têm um pouco dessa sensibilidade: o Jeneci tem muito dessa doçura, o Fabio Góes, o Bruno Morais, o próprio Kassin…
SILVA: É uma coisa de voz pequena também. A minha voz é pequena, não adianta eu querer soar como o Tim Maia. Eu não vou conseguir. É meio de ter noção da máquina que você tem na mão, de saber o tamanho que ela tem e saber usar isso na música.

FB: Você gosta de ser comparado a essas pessoas, de estar incluído nesse meio?
SILVA: É engraçado porque no começo pra mim era estranho, eu não gostava, porque eu pensava que era novo. Sabe, quando você faz uma coisa não pensando naquilo e te associam àquilo, você pensa “Sério?!?”. Mas não quer dizer que seja ruim. Faz você pensar “Pô, não tinha pensado nisso”. Acho que eu nunca foi associado a alguém que eu tenha pensado “Pô, que droga ser comparado a isso”. A reação geralmente é mais de surpresa mesmo.

Eu sempre gostei daqueles caras que tem uma linha melódica pra você conseguir identificar e eu acho que a doçura acaba vindo disso, sabe? Eu sou um cara tranquilaço, mesmo! Até meio zen!

FB: O “Claridão” é metade as canções do EP e metade de músicas que surgiram depois. Quando você começou a fazer o EP, você já tinha ideia de como queria o disco. Eu pergunto isso porque quando eu ouvi o EP, as músicas pareciam muito diferentes entre si, o que não acontece no álbum.
SILVA: É legal conversar com alguém que pensa dessa forma. Quando eu fui fazer o EP, eu não tinha a pressão de ser uma coisa super concisa, um conceito super fechado. Eu pensei em pegar o que eu tinha como compositor e expor ali. “A Visita” é de 2009, “12 de Maio” é de 2011. De 2009 pra 2011 aconteceu um monte de coisa na minha vida. Morei na Irlanda, voltei pro Brasil, tava entediadíssimo na minha faculdade. Eu me formei agora em dezembro, mas me matando pra me formar. Estava sem vontade nenhuma, desestimulado. Depois eu fui comprando instrumento, trouxe muita coisa da Irlanda. Antes era só o violino. Eu já tinha um Mac pra gravar as ideias, depois eu fui comprando mais coisa, comprei um synth e tal. Em 2010, eu tava em casa, eu tinha um piano, eu tinha minhas coisas, né. Então, as músicas acabaram agregando outro elementos. “12 de Maio” tem um monte de coisa, mas era só o que eu tinha em casa: um xilofone, um sax… provavelmente, na época da “A Visita”, se eu tivesse mais recursos, ela soaria diferente também. Com relação ao disco, quando o pessoal da Som Livre falou que achava legal repetir as músicas do EP, mesmo que ele tenha dado algum retorno financeiro, muita gente não conhece. Pra mim foi difícil pra caramba, porque eu acho muito mais fácil pegar um conceito, pensar “Eu vou fazer um disco assim” e ir do começo ao fim seguindo essa estética, do que já ter alguma coisa pronta e tentar encaixar outras coisas ali no meio. Eu fiz uma análise de BPM e fui variando, pensando no que podia ter pra compor o disco. O próximo disco eu acho que vai ser mais fácil no sentido de começar um projeto do começo ao fim. Uma época só, aquela ideia que você está no momento.

FB: Você já fez uma boa quantidade de shows agora. Como tem sido pra você e como você tem visto a recepção das pessoas?
SILVA: Acho que só melhora. Pra mim, pessoalmente e tecnicamente também, à medida em que você vai tocando mais, você não erra mais como errava no começo. O técnico de som sabe exatamente a hora em que minha voz tem que ficar mais alta ou mais baixa, então isso é um processo de ir tocando até o cara pegar, mas é difícil, sabe? E eu também fui perdendo a timidez. Eu sou muito perfeccionista com isso, quando eu estou fazendo essas coisas. No começo pra mim era muito difícil, porque, por exemplo, eu ia tocar no Sonar, sabia que ia ter um monte de gente incrível no mesmo palco que a gente tava tocando e não teve tempo de passar o som. O Sakamoto passando som 4 horas e o diretor de palco disse que não ia dar tempo, ia ser só o checklist, só pra saber se estava tudo funcionando. Naquela época, o nosso técnico não tinha feito nenhum gig. Por causa desse atraso do Sakamoto, tudo atrasou, ficou um clima super tenso. E meu fone parou de funcionar e a gente toca com click e com programação. Foi desesperador! Foi o primeiro show, foi muita pressão. Eu acho que a minha timidez tem a ver com isso. Meus amigos dizem que eu não sou tímido normalmente, mas é porque quando eu sei que não está exatamente do jeito que queria que estivesse, eu fico inseguro, penso que as pessoas não vão ouvir o que eu quero que elas ouçam. Uma coisa que agora é muito mais legal é que essa segurança técnica vai trazendo mais paz pra tocar, eu tô conseguindo curtir tocando. Ontem mesmo foi um show difícil, porque, pô, Nelson Motta na plateia, todo mundo sentado, tocando com a Céu, com o Kassin… não era aquele show que eu já tava acostumado a fazer. Mas foi legal. Acho que no próximo disco eu vou ficar mais firme.

FB: O que você já está planejando, já tem alguma coisa gravada?
SILVA: Eu tenho vários esboços. Como eu te falei, eu já estou começando a pensar no próximo disco. Esse começo é difícil pra caramba, de quando você tem a primeira ideia até você conseguir estruturá-la, mas depois vai vindo. Mas eu acho que eu a estou caminhando pro próximo disco. Tenho várias ideias, do que eu quero usar e do que eu não quero. E de tocar ao vivo também, no primeiro eu nunca tinha tocado nada. Agora que eu vejo coisas do lado do público mesmo, “ah isso vai ficar legal”. Você vai tendo uma outra visão, pensa no que aquilo causa nas pessoas. É uma outra cabeça.

FB: Eu li numas entrevistas você falando que queria fazer alguma coisa mais eletrônica, talvez com outro nome…
SILVA: Eu tenho muita vontade. Eu ouço muita coisa, eu quero fazer uma coisa divertida, sem pressão. Eu fico tentando, agora que eu to numa fase de comprar equipamento, que é uma coisa divertida e estimula a compor. Eu fico brincando em casa, com os timbres e várias coisas. E fico pensando “Isso aqui poderia sair”, mas talvez não com esse nome, não com essa cara…

FB: Mas não tem nada concreto?
SILVA: Não, só ideias vagas.

FB: O EP vai fazer dois anos. Como você avalia essa primeira fase, num plano bem geral?
SILVA: Aprendi que é difícil pra caramba o mundo da música, é muito difícil. Envolve muita coisa. É aquela coisa: tem essa lenda de que você vai fazer música pra você mesmo, música que te agrada. Mas, cara, você tá vendendo, sabe? Essa venda, você tá colocando o seu trabalho à mostra: “compra o meu disco, vai no meu show”. Isso é uma venda! Isso envolve muita gente, muitas coisas, muitos interesses. É difícil pra caramba conseguir guardar sua cabeça, sua essência musical, sem perder. Você vai conhecendo tanta gente. Gente que dá opinião, que diz “Você poderia fazer um música mais assim”, “Você poderia fazer isso…”. Mas não sou eu, tá ligado? Tem um negócio ali. É uma coisa que você tem que lutar mesmo, mas eu quero aprender coisas novas também, não quero me fechar nesse meio indie. É saber com quem se relacionar, com quem se associar. É o que eu dou exemplo da Céu, ela é muito boa nisso. É difícil no Brasil você ter um meio-termo. Ou é uma coisa mainstream-zão, tipo sertanejo, que dá muito dinheiro, shows com 100, 200 mil pessoas. Ou é um negócio muito pequeno que não dá dinheiro nenhum. Achar esse meio é muito difícil. É um abismo gigante. Eu não quero fazer música de um jeito que não seja o meu, mas ao mesmo tempo eu quero que as pessoas vejam o que eu tô fazendo, porque eu tô gastando tempo pra caramba nesse trabalho. (…). A maior dificuldade pra mim é essa, quando você expõe seu trabalho e começa a ser vendido, entra muita coisa em questão. [Faz uma pausa, pensa e respira] Tem que pensar bem nessas coisas pra não perder a essência.