Fernanda Brum | Liberta-me

Fernanda Brum

Liberta-me

[MK Music; 2012]

4.5

ENCONTRE: Site Oficial

por Rafael Porto*; 05/10/2012

Antes de falar sobre qualquer disco de música gospel, é preciso fazer um breve histórico do gênero no Brasil e falar de suas peculiaridades. Em terras tupiniquins, ao contrário da cultura norte-americana, o gospel nada tem a ver com música negra, blues, soul e R&B. A raiz da música brasileira está, de fato, na necessidade de constituir um mercado sólido e rentável.

Em poucas palavras, a música gospel brasileira é o que sobrou da música cristã registrada aqui nos anos 70/80 depois que as primeiras majors do ramo surgiram e o moinho de carne do The Wall começou a girar. Repetições de fórmulas internacionais – com abundância de pop rock – e letras banais focadas no antropocentrismo contrapõem a MPB rica em poesia genuinamente cristã praticada por grupos históricos – “Vencedores Por Cristo” e “Logos” – e hoje sobrevivente na voz de cantores independentes como Stênio Marcius.

Mesmo em meio à saturação das fórmulas catedraticamente mimeografadas por produtores e compositores do gênero gospel, é possível dividir os artistas em três diferentes grupos: vanguardistas (Leonardo Gonçalves e Daniela Araújo), reacionários (Kléber Lucas e Marina de Oliveira) e indecisos. Fernanda Brum, em seu nono álbum de inéditas, “Liberta-me” (MK Music, 2012), parece não saber o que realmente deseja ser.

Em 20 anos de carreira, a artista alcançou um grau de proeminência ímpar. Foi por sua voz grave e pelas mãos do marido produtor, Emerson Pinheiro, que a música gospel sofreu uma forte americanizada nos anos 90. Entraram os pianos elétricos, as baladas românticas e os arranjos de cordas em tom épico – tais como “Amo o Senhor” e “Quebrantado Coração”, entre tantas outras boas canções entoadas em uníssono em qualquer igreja evangélica.

A fórmula foi repetida à exaustão por artistas da então MK Publicitá, sempre sob a produção de Emerson, neste ponto alçado ao posto de Duprat da música gospel – guardadas e respeitadas as evidentes proporções. Na encruzilhada entre tornar-se uma caricatura de si mesma ou tentar algo novo, Fernanda Brum optou pelo rumo certo e acertou a mão em alguns trabalhos nos anos 2000.

Trouxe tambores às músicas que tratavam sobre missões na África, pandeiros às canções que falavam sobre o solo brasileiro e até fez clipe em favela para falar sobre injustiças sociais, a exemplo de “Pavão Pavãozinho” – um dos melhores refrões de 2010: “é hora do Senado acordar / é hora desse povo sacudir / é hora da bondade dominar”. Vanguardista na medida certa, esperava-se a mesma dose de coragem no novo disco. O que não veio.

“Liberta-me” é uma mistura de fórmulas oriundas dos anos 90. Lá estão o mesmo piano minimalista – que desta vez, gaba-se Emerson Pinheiro, não é sintetizado, mas acústico –, as cordas estrondosas, milimetricamente calculadas para te emocionar no refrão, as subidas de tom e, vá lá, sejamos misericordiosos, os tambores das músicas com algum tema étnico.

O grande trunfo do álbum, talvez, continue sendo as letras acima da média – analisadas em um mercado recheado de “você é um vencedor”, “campeão”, “a vitória é sua” e outras expressões próprias das igrejas neopentecostais fundamentadas na teologia da prosperidade. Todavia, na comparação com qualquer artista da clássica música cristã, que sobrevive piamente no universo underground das igrejas não midiáticas, as composições soam fracas.

Versos como “uma só fé e os céus se abrindo / Cristo repartindo a ressurreição”, de “Uma Só Voz”, são exemplo de um bom resumo teológico em forma de canção que pouquíssimos ainda se arriscam a fazer no gospel brasileiro. Poderia dar certo. “Liberta-me” poderia ir além, não fosse a fórmula inócua com que o álbum é conduzido; tal qual soro administrado intravenosamente, o disco passa desapercebido, friamente calculado para não nos tirar de nossa posição de conforto. E, pelo menos na teoria, a reflexão sobre a natureza humana e sua carência de salvação é o mínimo que se espera de uma mensagem essencialmente cristã.

Rafael Porto é jornalista e colaborador do Fita Bruta