Gal Costa: Recanto Ao Vivo

É comum e esperado que, quando um artista com uma carreira como a de Gal Costa decide realizar (e a palavra neste caso é realizar, não fazer) um álbum novo, ele realize, além do disco, uma turnê de shows pelo Brasil e, em consequência, um álbum com o resultado da transposição do disco do estúdio para os palcos. É natural que, à idade e à relevância de artistas como Gal, haja uma reflexão conjunta sobre disco e turnê. Além disso, até pouco tempo atrás, as turnês possuíam quase a mesma importância e reflexão que os longplays vendidos nas lojas. Não é por acaso que a mesma Gal de quem aqui falamos tenha na lista de seus melhores lançamentos discos ao vivo como “Fa-tal – Gal a Todo Vapor”.

Pode parecer meio confuso, mas em resumo é isso: Caetano Veloso decide fazer um disco chamado “Abraçaço“; Caetano faz uma turnê especial para o disco; Caetano lança um disco ao vivo da turnê Abraçaço, coroando e encerrando esta fase da sua carreira. Foi assim com “Cê” e “Zii & Zie”, não há porque não ser com “Abraçaço”. Disco + Turnê + Disco Ao Vivo. E hemos de concordar que esse é de fato o ideal na carreira de um artista: apresentar uma turnê tão bem pensada e alinhavada como o disco em que ela se inspira.

É assim também com Chico Buarque, Maria Bethânia, Adriana Calcanhotto e muitos outros. Mas as muitas menções a Caetano no parágrafo anterior não são mera casualidade. O fato é que Caetano é senhor do projeto “Recanto”, álbum + turnê, cujo único e gigante veículo é a voz de Gal. Assim como as composições, produção e concepção de “Recanto” estavam nas mãos do amigo baiano, é de Caetano a direção musical do show e a produção de “Recanto Ao Vivo”, espetáculo escolhido como Melhor Show do ano em prêmios como o da Multishow e o do jornal O Globo.

“Recanto Ao Vivo” mostra como “Recanto”, o seu disco com letras obscuras (de Caetano) e bases eletrônicas, encaixa-se precisamente nas performances vigorosas que a cantora se acostumou a entregar nesses muitos anos de carreira. É a transposição para a nossa década das apresentações impecáveis de décadas atrás da cantora. A decisão de Caetano e Gal para realizar esse projeto é a de trazer músicas famosas na voz de Gal para a atmosfera meio eletrônica meio claustrofóbica de “Recanto”, assim como de levar algumas canções de “Recanto” e manter algumas anteriores ao disco em uma sonoridade jazz standard à qual Gal poderia ser normalmente associada.

O resultado dessas decisões é um disco tão forte, intenso e vigoroso quanto o seu análogo de estúdio. A bem da verdade, há versões de canções de “Recanto” que, no disco ao vivo, soam ainda melhores, mais adequadas ao som e a voz livre de Gal ao vivo. “Segunda”, sétima faixa do primeiro disco do álbum, é certamente uma delas, talvez nosso melhor exemplo de adaptação da música nordestina às sonoridades mais obscuras de hoje em dia. “Um dia de domingo”, colocada na mesma altura do segundo disco do álbum é sua contraposição perfeita e delimita o outro extremo do projeto musical estabelecido para esse disco ao vivo.

Num disco quase irrepreensível, Gal Costa mostra sua voz muito próxima àquela que lhe transformou numa das maiores cantoras desse país e em tema principal do projeto que agora canta. Afinal de contas, “Recanto” é basicamente sobre a força da voz de Gal. Faz muito bem à alma ouvi-la num contexto que não se prende ao passado nem se acomoda ao jogo já ganhado. “Neguinho”, “Recanto Escuro” “Cara do Mundo” e “Miami Maculelê” (com uma participação impecável de Domenico nos vocais originalmente deprimentes de Caetano) mostram como “Recanto” possui de fato algumas das melhores das muitas ótimas canções já gravadas por Gal Costa. As letras e arranjos espinhosos de Caetano em “Recanto” e “Recanto Ao Vivo”, juntamente com a produção conjunta com seu filho Moreno, certamente tem um peso imenso neste resultado. As versões insólitas de “Divino Maravilhoso” e “Vapor Barato” (na sua melhor interpretação desde o já citado “Fa-tal”) mostram com claridade a influência e o acerto de Caetano na atual fase de Gal. O que faz pensar que a produção de “Recanto” e seus frutos – entre eles o reestabelecimento artístico de Gal – talvez seja o grande feito de Caetano Veloso na sua fase pós-Cê.