Jotta A | Essência

Jotta A

Essência

[Central Gospel; 2012]

3.5

ENCONTRE: iTunes

por Yuri de Castro; 19/07/2012

É bela a forma como a música gospel enraizou-se no pop americano. De Ray Charles e seu rhythm and blues cercado da música vinda das igrejas de vozes negras por todos os lados a Ben Harper e seu reggae-folk-pop de momentos inspirados (aquiaqui, aqui e aqui) e apenas radiofônicos (aqui, aqui e aqui); todos eles claramente inspirados nas mensagens que a cultura protestante edificou (só pra usar um verbo comum nas pregações aqui) nos Estados Unidos. E como nunca se sabe se o amor que é “gold to me” é o amor da mulher amada ou do Senhor, os americanos descobriram que não era vergonha nenhuma fazer música pop com as estruturas gospel. Dava arte e, veja, dinheiro.

Mas… uma crença deveria desvirtuar a obra de arte? Não. Mas tem acontecido. Aqui no Brasil, pelo menos. Antes, um adendo: é difícil que, numa tacada, preconize aos leitores caminhos de um gênero que há muito não dá as caras nos sites e suplementos culturais. Esse texto trata, portanto, de um produto que exala tiques que podem não ser captados (na leitura e na audição) por alguns leitores frequentes de publicações que lidam com música pop. Mesmo assim, acredito que a popularização da música gospel desde o levante neo-pentecostal tenha inserido subliminarmente conceitos que possam fluir o entendimento por parte de vocês durante este texto.

Quando José Antônio, então com 12 anos, emergiu em rede nacional por meio do programa Raul Gil algumas coisas estavam claras: era ali ele quem poderia, enfim, dar sequência à proposta do apresentador de revelar talentos. A potente voz de Robinson Monteiro que explodiu no programa cantando Whitney Houston e os trejeitos do gospel contemporâneo americano conquistou uma fatia do mercado e o coração da audiência. Desde então, forçou-se demais a barra em cima de boas vozes que de artistas nada tinham (esse é o preço que a música brasileira ganha quando decidimos que a técnica em uma interpretação vale muito mais do que um arranjo ou outro conjunto da obra).

Um ano depois, o menino José Antônio levou sua escola feita em uma Assembléia de Deus do município paulista de Sorocaba para a consagração nos palcos do programa e também para a estreia no mercado fonográfico. E “Essência”, desde o título, é pouco para o gênero que sucumbe a cada ano vítima de uma pasteurização incrível, ainda que viva com fôlego se excluída sua potência como englobador de obras de artes e limite-se a análise nos números de vendas e shows. Aliás, o disco recebeu certificação “platina” e já ultrapassa as 80 mil cópias, segundo informações da Central Gospel, gravadora de propriedade do pastor Silas Malafaia.

A parte da jogada de marketing de vender José Antônio como um menino muito extrovertido e, ao mesmo tempo, muito sereno e maturo, cada faixa de “Essência” é um sintoma da decadência desta música gospel contemporânea (viciada e afetada) que escora-se em artifícios e clichês da produção mais ralé do pop americano. Ao revelar no início do álbum a maior perfomance de Jotta A, a interpretação (no CD, em português), dos famosos versos (Aleluia! Santo é o Senhor poderoso Deus / Digno é o Senhor / Digno é o Cordeiro / Santo!) de “Agnus Dei”, o álbum entrega também a falta de vitalidade de todo o resto do registro. Se “Agnus Dei” é boba (o arranjo de cordas, a subida de tom no reforço do refrão e os coros sem expressividade desmerecem a força da canção que até hoje é cantada em igrejas protestantes no Brasil), por que não lamentar a canção “Lágrimas” que, perdesse os versos (horríveis, por sinal) “Perto da graça de Deus, me faz refletir os teus caminhos mais altos que os meus, os teus pensamentos mais altos que os meus”, pareceria egressa da produção de Rick Bonadio e seus pupilos do NX Zero?

Não se lamenta, aliás. A produção gospel no Brasil tornou-se um aparelho conduzido no piloto automático. As letras abusam de metáforas, frases, adjetivos e verbos em tempos afetados e batidos (trovão, cegueira, figueira, tempestade, águia, cordeiro e “firme estou”, “santo e tremendo”, “justo e fiel”, “santo de Israel” e “exaltai”, “louvai”, “adorai”); a emergência pentecostal na sociedade é personificada na música por meio das novas vozes que buscam a cantora Cassiane (e suas desproporcionais afetações de canto) como referência; a produção musical abusa de características da música pop adulta feita no início dos anos 90.

“Essência” é um erro e desperdiça Jotta A. Uma crença deveria desvirtuar a obra de arte? Não. Pelo contrário pois é uma fonte de inspiração. No entanto, a cegueira parece ter perpetuado-se como símbolo da ignorância e falta de pesquisa de quem manipula e domina (ou não) as mesas de som das principais gravadoras gospel do país. É uma lástima que o desrespeito à música negra (afinal, são os protestantes negros americanos que dariam o tom de toda a produção pop gospel, rhythm and blues, jazz e blues a partir, principalmente, dos anos 50) chegue ao ponto de negar tudo o que temos aqui de mais negro: a percussão, a dança, a repetição de letras (inventivas e criativas) de exaltação quase mantras recheadas de grandes histórias…

Uma crença deveria desvirtuar a obra de arte? Não. Mas, no Brasil, sim. Porque é aqui no Brasil em que os cultos afros são, até hoje, demonizados. Uma herança nefasta que caminha conosco desde o tempo em que as correntes arrastavam no chão e o chicote marcava cada costas em cada senzala. E, a cada negação do que temos de melhor, atenuamos muito a nossa afetação. A afetação de Jotta A não é culpa específica de um produtor, de seus pais ou da Cassiane. A terrível última faixa de “Essência”, de título “Vem Com Josué Lutar em Jericó”, tampouco pode ser creditada só à ingenuidade do artista que carrega seu nome na capa do álbum. Na música gospel, os demônios são brancos. Alguém precisa avisar a Jotta A, a Kleber Lucas e a todos os expoentes negros deste gênero que o espírito de Zumbi não reviverá para causar um pandemônio no status quo.

Enquanto eles esperam (aliás, eles não esperam pois desprezam Zumbi), a música que mais vende no país é ridícula como expressão artística pois é impossível de ser descrita. Qual é a característica do gênero “gospel” no Brasil? Difícil responder algo diferente de “genérica” e “banal”.

OBSERVAÇÃO: “Essência” encontrou alguma resistência em seu próprio nicho. Jotta A e a produção do álbum é, por vezes, acusada de “gritar demais” e, outras horas, crucificada por ser “pop demais” e “pentecostal de menos”. As duas formas de protesto se contradizem. Se Jotta A não canta e, portanto, grita, ele é petencostal em sua natureza artística. A preocupação aqui é que, cantando em tons muito altos, trazer algumas músicas de “Essência” para os templos evangélicos é missão difícil uma vez que os fiéis e os músicos teriam dificuldade em acompanhar. De qualquer forma, a preocupação diz muito sobre como este gênero abandonou qualquer possibilidade de fazer arte ou o mínimo dela, como chegou a esboçar com a explosão da música e do movimento negro no Brasil e com o surgimento de inúmeros grupos vocais a partir do final da década de 60.