Os encontros que produzem o Passo Torto não têm nada que se possa dizer que sejam de ocasião. Têm um trabalho forte de construção, de aproximação, de admiração e de conquista que foi formando, devagar, a turma; um agrupamento discreto de muitas cabeças que são, talvez, o impulso mais significativo na música popular desta geração. Não têm carona, não têm a oportunidade de estar no lugar certo na hora certa: todos são artistas, de fato, unidos por afinidade estética. Trata-se de um encontro entre iguais, no âmbito de uma turma grande que hoje colhe frutos bem maduros, como o Passo Torto e o Metá Metá.

Kiko Dinucci, Romulo Fróes, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral, juntos, são o Passo Torto. Os três primeiros assinam as letras; Marcelo, que produziu o disco do Criolo com o Ganjaman, divide a assinatura das músicas. Para negar a ideia do agrupamento por afinidade, pode-se objetar uma certa aleatoriedade nos encontros. A análise combinatória comprova o quanto é prolífica a justaposição dessas peças: Kiko + Douglas Germano = Duo Moviola; Kiko + Douglas Germano + uma pá de gente = Bando Afromacarrônico; Kiko e Marcelo + Juçara Marçal + Thiago França = Metá Metá; Marcelo + Thiago França + Anthony Gordin = Marginals. Isso é só o que eu sei, o que já ouvi por aí, e que deve ser uma fração de todos os arranjos. Quanto maior essa massa fica, maior é a força magnética de atração que ela exerce sobre nós, ouvintes. No entanto, para se credenciar a entrar na roda é preciso se alinhar com as ideias de invenção e de ruptura. O que se faz aí dialoga com uma longa tradição, mas é autoral no sentido forte do termo.

Em seu segundo o disco, o Passo Torto troca os instrumentos: do violão para a guitarra. O movimento que os empurra em direção às guitarras no “Passo Elétrico” parece análogo ao que produz o “Metal Metal”, segundo disco do Metá Metá, e que leva o Romulo Fróes do “Cão”, álbum de 2006, para o “No Chão Sem o Chão”, lançado em 2009. É a resposta que equaciona o incômodo com a expectativa, em uma tentativa deliberada de confundir, de fazer aquilo que não se espera, e, assim, avançar sem rumo. Cada um com a sua parcela: do punk aos afro-sambas; da voz grave do cantor de sambas desajeitados (e também uma espécie de porta-voz dessa geração); do olhar agudo do cronista que se alimenta das ruas; do capricho na produção e na amarração de todas essas pontas.

Como no primeiro disco do Rodrigo Campos, São Paulo é o objeto do Passo Elétrico, em um cenário apocalíptico: nem o Vanzolini, nem a Rita Lee, nem muito menos Sampa conseguem mais responder pela completa tradução dessa cidade. Destino trágico das canções (ou da canção)? O disco responde com um sonoro “Não!” e grita: enquanto a sociabilidade urbana dos grandes centros no Brasil agoniza, a canção, aqui, renasce. Por um lado é um puta azar para São Paulo que o “classicismo” não mais a represente. Por outro, é um golpe de sorte.

A peça musical popular protesta por relevância cultural e pela ocupação dos espaços públicos (o rádio, por exemplo), porque se coloca, de novo, como o retrato de um tempo, que tem a potência de se eternizar. Porém, enquanto a tecnologia democratiza e inclui, no que diz respeito à produção e à distribuição, ela faz, ao mesmo tempo, com que se pulverizem os interesses, com uma força de dispersão de segmentação muito excludente. O potencial, então, se perde porque pouco se ouve, pouco se discute, pouco se reconhece o mérito. As canções de “Passo Elétrico” dizem mais sobre a atualidade dessa cidade do que os seus jornais, mas vão, junto com eles, enrolar o peixe no dia seguinte.

O tom de lamento que adoto aqui é meio ingênuo, meio nostálgico, e também desconsidera o mérito. É preciso ressaltar o inconformismo, a técnica, o olhar, a ligação de seus autores com as artes plásticas, com o cinema, com o candomblé, com o ensaio, com a crônica. Enfim, há muita coisa sendo questionada, até mesmo o formato “banda”, por se tratar de um movimento mais amplo, ainda não batizado. Em resumo, “Passo Elétrico” é uma rica colagem de significados e sentimentos que se propõe a re-estudar o samba. É angustiante e bela como a vida do “Homem Só”, que abre o disco; é evidente como as micoses e varizes dos prédios em “Helena”, prontas pra te devorar dali a algumas faixas; e denuncia uma patologia obsessiva que contorna o sexo e o amor; e termina com uma gargalhada que é só deboche: “desculpe a dignidade de lhe dizer atrocidades, mas essa é a minha maior qualidade (…) Rárárá”.