Não faltam na história da música exemplos de exílio. Gil, “puxando o cabelo, nervoso, ouvindo Celly Campelo pra não cair”. Chico, ouvindo de um caro amigo que a coisa está preta ou pedindo para não dizer que o viu chorando. Caetano, buscando no céu de Londres a visão de algum disco voador. Compreensivelmente, a história recente da música brasileira liga o exílio aos desmandos da ditadura militar, mas nem todo exílio é político, podendo ser por vezes uma decisão livre de quem parte.

Entretanto, todo exílio é, sim, uma fuga, forçada ou não. Caetano Veloso foge da ditadura. Os Rolling Stones, das taxas e impasses da indústria musical. Bon Iver, do luto pós-pé-na-bunda. Com esses exemplos, pode-se ver que os motivos da partida de um para o desconhecido são variados e não deveriam ser julgados. E podem resultar em grandes discos. Não temos certeza, mas tampouco é difícil imaginar um motivo para o exílio de Rodrigo Amarante, um porquê do músico ter passado a maior parte dos últimos sete anos nos Estados Unidos, distante do público e dos seus. É deste exílio, sobre o qual poucos sabemos, que “Cavalo” é fruto evidente.

Não é difícil perceber em “Cavalo” a excelência de composição que foi o carro-chefe do sucesso do Los Hermanos nos anos 2000. Ainda que as faixas não sejam tão interessantes quanto às da época do quarteto carioca, é visível o desenvolvimento e apuro nas letras e composições deste disco. Contudo, lá se iam cinco anos desde a última faixa lançada por Amarante (“Evaporar”), o que pode significar que tanto aprimoramento é apenas resultado de tempo demais para depurar um punhado de faixas.

De qualquer maneira, Amarante continua em “Cavalo” com o uso de elipses literárias em grande harmonia com a música, como quando deixa a melodia que abre “Nada Em Vão” substituir o momento chave da declaração presente do refrão. Após Amarante cantar “Quando eu vejo você / Me olhando assim / Vendo em mim / O que eu vejo em ti”, não precisamos saber exatamente o que se vê, pois a melodia que vem a seguir nos diz mais e melhor. A sutileza de Amarante está em não dizer o que no fim das contas não pode ser dito, e deixar tais momentos para a música.

É o que acontece também em “Tardei”, quando ele se pergunta, na volta do exílio, “Onde está o meu lugar?” e o refrão, ao invés de responder, traz a figura sobrenatural e fantástica de um fio de prata que desce um rio, da terra pro mar. São momentos em que Amarante abdica de uma falsa objetividade pela sensibilidade musical. Quem já ouviu José Miguel Wisnik analisar “Dois Barcos” sabe que o Los Hermanos considerava essas possibilidades e relações entre letra e música com bastante cuidado. São detalhes como estes que transformam certas canções de Rodrigo Amarante (e de Marcelo Camelo) e dão a elas uma beleza com sentido e propósito, não apenas supérflua ou simplesmente estética. Em última instância, seria este o verdadeiro santo graal de toda uma geração posterior ao fim do Los Hermanos, o segredo dessa busca por algo que ambos os compositores fazem com naturalidade e, na maioria das vezes, sem afetação.

“Cavalo” não é sob qualquer perspectiva um disco de verão como “Little Joy”, nem possui faixas de leveza como algumas da leva de “Quatro”. Quem via e ainda teima em ver Rodrigo Amarante como uma figura solar em oposição ao mormaço intencional de Marcelo Camelo parece esquecer-se de que os momentos mais melancólicos do Los Hermanos, como “Quem Sabe”, “Sentimental”‘, “O Velho e o Moço” e “Os Pássaros”, são, em considerável parte, criação de Amarante.

Mesmo em “Little Joy”, a única aventura solo do Ruivo é “Evaporar”, canção que encerra o álbum e que profeticamente antecipava o próprio exílio e seu primeiro disco solo. Assim como acontece, por exemplo, aos últimos trabalhos do MGMT, parece haver em parte do público e da crítica uma expectativa frustrada, que tem menos a ver com os artistas e suas criações do que com o próprio ouvinte. ‘Cavalo’ é um disco corajoso pois não se entrega às expectativas rasteiras daqueles que vêem Amarante como o oposto do seu ex-parceiro, o anti-Camelo, e não como seu complementar.

Todavia, o fato de “Cavalo” ser um disco corajoso, bem organizado e refletido não se traduz necessariamente em canções extraordinárias. As músicas de “Cavalo” demonstram muito mais força quando em conjunto, formando um todo com forte significado. Contudo, o disco é formado em sua maior parte por canções medianas, bem produzidas e compostas, mas com um apelo consideravelmente menor do que as faixas assinadas por Amarante no Los Hermanos. Ainda assim, faixas como “Cavalo” e “Tardei” são muito fortes e bonitas, que certamente se incluem entre suas melhores composições. As primeiras faixas do disco, apesar de bem arranjadas e de assimilação mais rápida, entretêm sem deixar grandes consequências no ouvinte. Por sua vez, a segunda metade do disco possui momentos de beleza mística (“Cavalo”) e de simplicidade sincera (“O Cometa”) que podem retribuir muito mais a quem se dedica a uma audição mais cuidadosa.

Por fim, Rodrigo Amarante consegue entregar um disco que é o claro resultado de muitos anos de apuro e apuros, que traz a marca da reflexão de um momento novo e solitário e passa pelas melhores qualidades do cantor enquanto músico e compositor. Ele consegue entregar músicas que não são reféns do seu ‘passado glorioso’ em uma das bandas mais influentes das últimas duas décadas e que, se não apontam para um lugar totalmente novo, ao menos mantêm as características que o fizeram um dos compositores mais interessantes da nossa música recente. Se o exílio parece um tema sisudo e que ofusca um lado mais facilmente agrádavel de Rodrigo Amarante, o que nos resta é torcer para que ele siga seu curso com a mesma integridade e liberdade a que se entregou em “Cavalo”.

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