“Malagueta, Perus e Bacanaço” foi lançado nos acréscimos de 2013, quando boa parte dos ouvidos e olhares mais atentos já estavam fechados para balanço. A data serve de álibi preguiçoso para justificar a ausência na maior parte das listas de melhores do ano, ainda que se possa procurar outros argumentos. O mais recente disco de Thiago França trata-se de uma homenagem ao cinquentenário do conto homônimo de João Antônio, jornalista, redator publicitário e escritor paulistano que andava meio esquecido até a Cosac Naify resolver republicar suas obras completas. João foi um dos grandes nomes da fase de ouro da revista Realidade, iniciativa da editora Abril em meados dos anos 1960, que se inspirava no jornalismo literário de expoentes como Truman Capote, Norman Mailer e Gay Talese. O conto “Malagueta, Perus e Bacanaço” talvez seja o maior exemplo da qualidade da prosa literária de João Antônio, para a qual Thiago França presta aqui a sua reverência.

Primeiro, falemos do texto. O conto se constrói sobre um tripé: São Paulo, malandragem e sinuca (um lugar, um modo e um meio). Esse é o universo que João Antônio retrata e a partir do qual produz uma linguagem que incorpora o vocabulário, a sintaxe e os trejeitos da rua: “A curriola parada naquele salão da Lapa. Jogo nenhum. Safados por todos os cantos. Magros, encardidos, amarelos, sonolentos, vagabundos, erradios, viradores. Tanto sono, muita gana, grana pouca ou nenhuma naquela roda de sinuca. A roda fica mais triste sem o jogo. Magros, magros. Pescoços de galinha“. Nesse cenário, estabelece-se uma hierarquia entre os trambiques dos malandros e a ingenuidade desprevenida dos coiós. Mas não há papéis fixos. Nenhum malandro é esperto o suficiente para que nunca pague de otário.

Passemos ao disco, que tem duas pernas: o conto e o samba. Thiago França faz um intervalo na linha mais experimental adotada em trabalhos como o Sambanzo, o Marginals e o Metá Metá. “Malagueta, Perus e Bacanaço” é também um disco um pouco resistente a rótulos, mas menos. Dá pra dizer que é samba instrumental, ainda que não fique só nisso e sem querer dizer que isso seja pouca coisa. De todo modo, é um disco mais convencional. Três das onze faixas têm letras cantadas pelos parceiros habituais, há espaço para um ou outro improviso, algo que lembra o free jazz, uma frase aqui outra ali, além de um bolero em homenagem à personagem coadjuvante Marli, que “fazia a vida num puteiro da rua das Palmeiras”. A presença do saxofone é marcante, mas não é autoritária e concorda com a visão peculiar que Thiago mostra ter do instrumento.

O interesse pelo tema e a delicadeza da homenagem são uma conversa a parte. Conta João Antônio sobre o modo de sobrevivência dos deserdados, que vivem à margem da história oficial perambulando pelos bairros de São Paulo em 1963. Não é diferente do que fazem Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Romulo Fróes e Marcelo Cabral no Passo Torto, e não é à toa que Thiago entregue aos três primeiros malandros a autoria das faixas cantadas do seu disco. Além dos 4, o disco tem a participação fundamental de Rodrigo Ogi, incorporando e atualizando o vocabulário de João Antônio em parceria com Kiko na faixa “Caso de Bacalau”, além de mais um monte de gente: Anderson Quevedo, Amilcar Rodrigues e Didi Machado nos metais, Welington “Pimpa” Moreira na bateria, Ganjaman nos teclado, Juçara Marçal, sempre ela, cantando, e o mulher negra Maurício Pereira declamando a última frase da história em “De volta à Lapa”.

Sem cair na armadilha de ser música incidental para o conto, o disco reinterpreta e transpõe os temas para a sua linguagem. As vinhetas dedicadas a cada um dos personagens são um bom exemplo: Bacanaço, o malandro adulto e líder da gangue, se apresenta como professor de rebolado em “Picardia”; Perus é um garoto, novato no jogo da vida, corajoso mas ressabiado, como se deixa ver em “Nostalgia”; e Malagueta é o velho comedor de pimenta que não tem nada a perder e vive um dia depois do outro pra combater a “Fome”. Assim como o livro leva o nome do conto, o disco de Thiago abre com a faixa “Malagueta, Perus e Bacanaço”, levada numa cadência mais lenta, com clima de salão de sinuca e cachaça.

O conto é mais duro e mais cru que o disco. O malandro paulistano de João Antônio é menos vistoso que o malandro carioca, ainda que seja nítido o encantamento do autor com esse universo. A linguagem frouxa e fluida contrasta com uma vida que é triste e cíclica. Os 50 anos que separam as duas obras parecem mostrar que existe cada vez menos amor em SP e aí fica aquela sensação de que tudo poderia ter sido um pouco mais sombrio, um pouco menos romântico, um pouco mais triste. No entanto, a vida loka e a correria dos nossos dias têm também seu tempo morto, suas alegrias, seus ídolos e seu deboche, assim como no conto. Então, no fim, fica tudo certo.

Ao reunir a nata da malandragem em torno de si, Thiago França banca o João Antônio e conta, a seu modo, as histórias de todos os Malaguetas, Perus e Bacanaços que São Paulo produz de modo quase industrial. Mas é o mesmo cara que leva os simpáticos avós para o verem tocar quando vai a Belo Horizonte, sua cidade natal. Prova inequívoca de que nesse jogo triste da vida, tal e qual os personagens de João Antônio, todo mundo é ora malandro, ora coió.