Talvez não saiba o desavisado turista que aporta em Vitória, mas a ilha banhada de baía por todos os lados é uma boca banguela. Ainda o antropólogo Claude Lévi-Strauss não tenha referendado esta observação para outros locais senão para a Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, basta uma circulada pela linha do tempo musical da capital do Espírito Santo para entender porque um dos melhores álbuns de 2013 é de uma banda que acabou.

“Veneza”, com o perdão da aliteração, é um aviso de algo que nunca antes se fixou na enorme preguiça estética do que desenvolveu-se após a explosão do chamado rockongo, na terra mais conhecida por seu filho desertor Roberto Carlos, pela moqueca sem dendê baiano e, em menores proporções, pela Läjä Records e pelo Dead Fish.

Desde 2008, o Solana ergue uma quarta ponte de propriedade única  e exclusiva da banda que liga pontos menos óbvios das influências de cada integrante e, que aos poucos, foi isolando como uma das poucas resistentes a sabe-se lá o que. Ao que parece, há um sujeito oculto no Espírito Santo contra o qual todos lutam, mas que nunca revela-se na íntegra uma vez que tem sua origem na culpa dos próprios membros da luta armada. Então, quando ficou óbvio que “Feliz, Feliz”, segundo álbum do Solana, era um registro ímpar, ficou claro também que Bento Abreu, Juliano Gauche, Murilo Abreu e Rodolfo Simor precisariam ir conferir os ventos do front. Acontece que o clima era morno. O que era pra ser linha de frente, se tornou festinha — na qual alguns direcionavam louvor, outros desconfiança para a banda — e assim, lá, ficou-se muito bem. E foi-se ficando.

Acontece que, como em “O.I.M.”, o Solana é bicho e as pessoas realmente começaram a deixar para lá. Porque é assim o Espírito Santo. Mas também assim é a própria trajetória da banda após o ano de lançamento de “Feliz, Feliz”: cada integrante parecia seguir seus caminhos mais seguros (produtora, estúdio, outras bandas e projetos pessoais) e demorou cinco anos para que “Veneza” finalmente ganhasse o verniz final.

A densidade que sobrava em uma faixa como essa é agora distribuída por todo um álbum como se a Ecoporanga de Juliano Gauche tivesse sido removida por uma draga de seu local original e plantada no meio do concreto da Terceira Ponte. “Veneza” é um dos exemplares mais belos de uma tentativa de um rock rural que há muito não dá as caras com tanta naturalidade e não-pretensão. A culpa é de um todo da produção de Marcel Dadalto, membro de uma banda ídola dos quatro, o Zémaria, que conseguiu entre idas e vindas de Vitória ao interior de São Paulo manter as coisas um pouco fora das rusgas que iam surgiram a cada etapa da produção da banda.

Nesse ínterim, Gauche já articulava-se em sintonias bem distantes do ruralismo do Solana e mais próximas das tentativas de pop realizadas por Tatá Aeroplano (ainda assim, é possível relacionar muitas das letras de seu primeiro e homônimo álbum com as de “Veneza”, caso das sintomáticas “Personne” e “Deixa Essa Porra Pra Lá” (!), respectivamente).  E, de fato, como diz a letra da primeira música citada nesse parágrafo, a impressão é de que, a cada música, os quatro se cortam para ver se ainda encontram (veia, amizade, trabalho, tesão). A parte das despedidas (que antecipamos, de alguma forma, aqui ou, oficialmente, aqui), “Veneza” se contrói como o registro mais grave da banda, algo raro na produção contemporânea do Espírito Santo, um dos belos trabalhos de 2013 e, o mais importante, um dos álbuns que não surgem há muito tempo nas bandas que ousam tocar rock no país.

Ainda é impressionante a capacidade de encaixar tantos climas distintos em um único material. “Veneza” comprova um trabalho chocante de aproximação de música e letra. Previamente lançadas, “A Casa dos Ramalhetes” e “Se Eu Caio A Alegria É Geral” atestavam isso de certo modo. Aquela, agora com os violinos de SILVA, é uma versão atualizada e nada bucólica de “Paisagem na Janela”, de Lô Borges e Fernando Brant; esta, é algo que um britânico de memórias do brit-pop e do atual revival pós-punk não conseguiria compôr. “O Mundo Não Deve Saber”, além de ser, até agora, a peça mais bem acabada do baixista Murilo Abreu, é também a primeira guinada ao tal clima rural de concreto ao que me referia do álbum. Se aproximando das tentativas ruradélicas do carioca Bonifrate (e também de sua banda Supercordas), Abreu parece mapear, guardadas as semelhanças com a atual condição da banda, algum relacionamento que, vivendo da adrenalina de algum auge, padece das escolhas assumidas.

“Celles Sur Belle” é uma das únicas músicas que criam algum elo com “Feliz, Feliz”. Não à toa, é homenagem de Juliano Gauche à pacata cidade francesa na qual o Solana tocou em 2009, um ano após o lançamento do segundo álbum. “Eu Não Penso Em Ninguém” é uma das inúmeras chegadas do vocalista à obra de Sérgio Sampaio e aponta o disco para a sua direção mais sisuda. O auge disso é “Jesse James”, filha feita fora do casamento de algum disco do Clube da Esquina, na qual o protagonismo, como se fez em exercício por todo o álbum, faz-se distributivo e é, aqui, da guitarra de Rodolfo Simor, tal como é também em “Franz Bardon”, a outra que faz menção aos anos anteriores da banda. “A Caminho do Caibalion”, a grande faixa dos primeiros momentos de “Veneza”.

“Esperar não vai trazer e fugir não vai livrar”, canta Gauche em “Um Outro Lado”, antes de um dos poucos refrãos menos inspirados de “Veneza”. Não vai mesmo. Se o Solana não retorna, isto tampouco tira o fardo que os quatro terão que enfrentar daqui pra frente: cometeram um grande álbum e a opção por não continuar na gôndola só pode se dever aos fatos da desconfiança de que a água que inunda não possui tanta limpidez, tal como é a principal vedete turística da cidade italiana que batiza este terceiro álbum do Solana. De qualquer modo, por “Veneza” está escrito que voltar é pior que morrer. E morreu — com a sensação de ter sido antes do que era pra ser.