Ben Frost e Lubomyr Melnyk @ Novas Frequências 2014

Como dois músicos da programação do Novas Frequências 2014 buscam, por vias diferentes, o mesmo objetivo

Music has changed my fingers“, disse um Lubomyr Melnyk despido em roupa e espírito do que geralmente se esperaria de um pianista erudito, entre uma e outra peça das quatro que apresentou no Centro Cultural Sérgio Porto, na noite abafada de 03/12, uma quarta-feira do festival Novas Frequências, Rio de Janeiro. Esta constatação, a música me modificou fisicamente, ao mesmo tempo elementar e espantosa, talvez seja uma das chaves para entender o que propõe Melnyk com sua música. Assim como talvez também seja oportuna para refletir sobre a apresentação de outro gigante no Novas Frequências de 2014, o australiano radicado na Islândia Ben Frost, e, por que não, talvez até mesmo para pensar o que propõe o próprio festival, com uma curadoria tão diversa a ponto de trazer ao mesmo evento um pianista como Melnyk e um experimentador de ruídos como Frost.

Claro, o pianista ucraniano, apresentando-se de camisa e calça jeans, sozinho no palco pouco iluminado, voltado para o público sentado numa arquibancada, sabia secretamente do impacto daquela pequena frase, “a música mudou meus dedos“, misturada à explicação protocolar mas não menos apaixonada do que significava técnica e esteticamente cada composição apresentada ali no Sérgio Porto. Ora, não é incomum ouvir de pessoas, sejam amigos ou desconhecidos, variações de frases como “a música mudou minha vida”, “a música me livrou da morte”, “a música me salvou”. Todos sabemos bem dos poderes extraordinários da música. Mas, quando a transformação pela música fica ali, patente, evidente, selada no corpo físico de um ser à nossa frente, o assombro toma dimensões antes não imaginadas. A música de Melnyk é como sua frase: ao mesmo tempo evidente, de alguma maneira pouco inovadora, de mãos dadas com o clichê, mas, pelas circunstâncias criadas pelo pianista, ao mesmo tempo surpreendente, renovadora.

Talvez a sugestão corpórea da frase de Melnyk, ligada a uma técnica de repetição que nos exaure apenas em observá-lo, traga mais à luz o caráter extremamente físico da sua música: como é possível tocar tantas notas, tantas vezes, ao longo de tantos minutos? Sim, parte importante da música de Melnyk possui esta característica física, técnica. Mas, tão ou mais importante para o ucraniano é o caráter metafísico, transcendente, da música que propõe. A música criada por Melnyk tem o objetivo de atingir o sublime, e a repetição em camadas é o meio encontrado por ele para isso. Talvez seja aí que ele se diferencie (mas não tanto), dos compositores minimalistas da segunda metade do século passado: sua reiteração de notas é, além de arrebatadora, extática, no sentido metafísico do termo.

Eduardo Magalhães/I Hate Flash
Eduardo Magalhães/I Hate Flash

Logo na primeira composição apresentada por Lubomyr já estava claro, além do caráter espantoso da sua música, pela conjunção de suas roupas despojadas, da presença da arquibancada e não de cadeiras acolchoadas e confortáveis, da pouca e justa luz sobre o piano, que o caminho escolhido por Lubomyr Melnyk para criar sua música era o da austeridade, da abnegação. Dá para dizer que esta é sua concepção de transcendente: uma disciplina monástica fundada na reincidência.

Lubomyr é adepto do que chama continuous music, música contínua, ao mesmo tempo técnica e estética, forma e conteúdo, um modo de tocar piano que busca o sobrenatural, por meio de uma repetição rigorosa. Utilizando-se de algumas opções sonoras, como o reverb e a gravação anterior adicionada no momento da apresentação, a recorrência de notas no piano de Melnyk tem a capacidade de sugerir ao ouvinte um quê de sobrehumano, inexplicável. Não à toa, Lubomyr defende, sem conseguir esconder certa imodéstia, ser um dos poucos no mundo a executar suas composições. Segundo ele, sem a técnica desenvolvida por si, nenhum pianista erudito, com educação musical comum, consegue executar suas peças.

Lubomyr parece por vezes um mago diante do piano, suas mãos aparentam flutuar sobre as teclas, em um ir-e-vir abarcando quase todo o piano. Ir-e-vir de fato, posto que o pianista está lá, indo e voltando nas mesmas teclas, repetindo-as com pequenas e sutis variações, somente compreensíveis aos poucos, no decorrer de vários minutos (unidade de tempo que, em termos melódicos, parece uma era). A variação na música de Melnyk é constante, faz parte do gênero que criou para si, mas é como se acontecesse em longos períodos, como o glaciar que derrete a cada segundo, ao longo dos anos, e, de repente, nos damos conta de uma grande placa de gelo caindo furiosa sobre o mar. Geleira derretendo-se, assim é a música de Melnyk.

Eduardo Magalhães/I Hate Flash
Eduardo Magalhães/I Hate Flash

Se Lubomyr apresentou-se diante do público, deixou-se iluminar, explicou sua música contínua, falou de si, de suas composições, Ben Frost foi seu extremo oposto. Na noite de sábado, 06 de dezembro, sentados nas cadeiras acolchoadas e confortáveis do Oi Futuro Ipanema, tudo que percebíamos de Ben Frost era sua música e sua silhueta. Não houve palavra, apenas ruído e batida, e alguma melodia perdida, procurando a luz do dia numa floresta de barulho, sem sucesso. Este texto não une estas duas apresentações à toa. Há uma certa oposição, ou melhor, complementaridade, nestes dois artistas e no modo como apresentam suas músicas. Por diferentíssimos caminhos, ambos chegam ao mesmo destino:  a música que transforma, modifica.

Esta dicotomia ficou bem explícita em um dos elementos das apresentações: a iluminação. Enquanto a luz da apresentação de Melnyk era jogada sobre as teclas e mãos do pianista e sobre o corpo do piano, a luz no Oi Futuro Ipanema era lançada sem cerimônias diretamente no público. Estava lá um forte refletor amarelo, por vezes branco de tão intenso, e uma luz de strobo, piscante, voltada diretamente aos olhos indefesos da plateia. Ambos os refletores, localizados detrás de Ben Frost, jogavam sua luz ao público, transformando o músico em barreira.

Enquanto Melnyk, para apresentar sua música, coloca-se como sujeito – afinal, estamos diante do único pianista capaz de nos apresentar aquela música, o homem que foi modificado pela música, cujos dedos foram mudados – Ben Frost é o intermediário. Em sua apresentação, os seres a serem modificados pela música produzida por Frost são os ouvintes, o público. Por isso, não é exatamente surpresa que a luz do palco seja direcionada não ao músico, mas às cadeiras que assistem Frost debater-se com a guitarra, lutar com a mesa cheia de equipamentos.

Pois Frost, assim como Melnyk, busca com suas composições, mas por outra via, a mudança de situação, a transformação. Se Melnyk busca este objetivo por meio da beleza, do excelso, Ben Frost o busca por meio do incômodo, da experiência limítrofe entre o desagradável e o êxtase. Ambos atingem o assombroso, o deslumbrante, o, com o perdão do trocadilho, inaudito, o nunca antes ouvido, presenciado.

Assumindo a música, em casos excepcionais como estes, como uma experiência transcendental, Melnyk nos pega com suas mãos, modificadas pelo inexplicável, e nos leva pela via do sublime, da beleza etérea; enquanto que presenciar a apresentação de Ben Frost, por sua vez, se assemelha mais a um rito de autoflagelação, que, não por isso, também conduz à contemplação transcendente. Assistir a Frost no Oi Futuro Ipanema foi como presenciar uma força da natureza, o teatro inteiro tremendo com a absurda força dos graves, o estrobo anunciando a qualquer momento o desfalecimento de alguém sentado naquelas cadeiras vermelhas (não aconteceu, ainda bem). A música de Frost trouxe tamanho impacto que, de certa maneira, fazia o público questionar sua própria segurança, ainda que, no fundo, todos soubessem que estavam em ambiente seguro.

Se a música de Lubomyr Melnyk é geleira degelando, a de Ben Frost é apocalipse vindo, não com fogo, mas granizo, pedra branca caindo dos céus, atingindo-nos em cheio. Melnyk é contemplação passiva, Frost é arrebatamento físico, dor sublimada, duro baque do inesperado e insuportável, em toda sua beleza massacrante.

Eduardo Magalhães/I Hate Flash
Eduardo Magalhães/I Hate Flash

Music has changed my fingers“, ouvimos de um Lubomyr Melnyk no meio da sua apresentação. Não me vem melhor explicação para o que aconteceu no Oi Futuro Ipanema do que algo similar: todos fomos modificados, fisicamente, pela música de Ben Frost, de tal forma que, ao fim da apresentação, desconhecidos olhavam-se estupefatos, sorriam em deslumbramento por terem sobrevivido àquela experiência.

A proposta do Novas Frequências, enquanto festival, me parece justamente esta: trazer ao público brasileiro, presente no Rio de Janeiro, músicos e apresentações sonoras que propiciem a transformação de que a música é capaz. Uma transformação que se expressa tanto física quanto metafisicamente. Faz-me lembrar do poema de João Cabral de Melo Neto, em que o poeta enumera o que o amor lhe comeu:

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

Assim foi a música apresentada naquelas duas noites de 2014, assim é a música apresentada no festival Novas Frequências, devoradora de tudo: paz e guerra, dia e noite, inverno e verão, silêncio, dor de cabeça, medo da morte.

FOTOS: Eduardo Magalhães/I Hate Flash