Herança Musical

Por Eduardo Lemos e Yuri de Castro*

Os sobrenomes de cantoras como Bebel Gilberto, Thalma de Freitas, Luiza Possi, Júlia Bosco Marina Wisnik denunciam claramente a riqueza de suas origens musicais. Mas há exemplos em que a escolha dos sobrenomes artísticos dos filhos desvia a atenção da influência paternal e que poderiam gerar mais dessas publicações de título fácil, como o dessa matéria. No Mês dos Pais, o Almanaque Saraiva foi buscar nomes de destaque dessa década para descobrir as boas histórias e resultados que surgiram dessa relação pai-filha. Você conhece a origem de Tulipa Ruiz, Céu, Mariana Aydar e Tita Lima?

MARIANA AYDAR + MARIO MANGA

“Sou fã do meu pai em todos os sentidos. Ele tem muita personalidade e isso me motivou a também fazer as coisas do meu jeito”, diz a cantora Mariana Aydar, filha do compositor Mário Manga, diretor musical e fundador do grupo Premê (ex-Premeditanto o Breque), que fez fama na cena paulistana da década de 80.

“Meu pai é roqueiro acima de tudo. A primeira vez que eu fui pra Bahia, ele falou: ‘Filha: sexo e drogas tudo bem, mas música baiana não!’ [risos]. A estratégia não deu muito certo porque amo muito a música brasileira e a considero a matéria prima dos meus 3 discos [o mais recente é Cavaleiro Selvagem Aqui Te Sigo, de 2011], mas a “cobertura” dos discos tem muito a ver com a influência dele, a vontade de experimentar, de procurar um repertório não óbvio e na escolha de timbres e músicos que eu admire.”

A presença do pai na carreira da filha não se dá apenas em influências e inspirações. Em 2007, os dois se juntaram para apresentação no Projeto Pais e Filhos, do SESC de São Paulo, cantando repertório do Premê e do álbum de estreia de Mariana [Kavita I, de 2006]. Dois anos depois, Mário tocou violoncelo no segundo álbum da cantora, Peixes Pássaros Pessoas, e participou do show oficial de lançamento do disco, no Sesc Pinheiros, em São Paulo.

TULIPA RUIZ + LUIZ CHAGAS

O caso atual mais emblemático de parceria pai-filha é de Tulipa Ruiz e Luiz Chagas, ex-guitarrista da banda de Itamar Assumpção, o Isca de Polícia. Há quase uma década, os dois dividem o palco em turnês mundo afora – ela com sua voz surpreendente, ele como guitarrista da banda que a acompanha. E, agora, em Tudo Tanto, novo disco da filha a ser lançado em agosto, dividem a autoria de “Víbora”.

“Ele é guitarrista e jornalista. Desde pequena sou influenciada por esses dois lados. Ele escreve sobre música e cinema, então sempre me atualiza nesses assuntos”, diz Tulipa. “Fiz uma peça em que a tradução era dele. Ele me ensinou a montar um fanzine; sempre esteve ligado nas minhas coisas e eu nas dele. Gostava de ouvi-lo e também lê-lo. A influência do meu pai é uma estética, de linguagem. Inevitável isso não fazer parte da minha vida”, contempla Ruiz. “Depois, quando comecei a cantar, é que começamos a trabalhar formalmente e informalmente de verdade.

CÉU + EDGAR POÇAS

A ligação emocional do pai com a música é, muitas vezes, o que desperta nos filhos algumas características que vão conduzir suas respectivas carreiras. De discografia das mais interessantes da sua geração, a cantora Céu deve parte disso a seu pai, o maestro Edgar Poças. Compositor de jingles e dos sucessos do grupo infantil Balão Mágico (inclusive “Superfantástico”), Poças foi agraciado por ter nascido na gênese de quase tudo o que há hoje.

“Sou de um mundo sem rock até os meus 12 anos. O mundo era outro e, de repente, Elvis aparece. Depois, a Bossa Nova. Quando eu ouvi João Gilberto, nada mais na minha vida foi o mesmo.” Essa imersão de Poças se traduz na carreira da filha. Um mimo dessa relação é o jazz-bolero “Me Importas Tu”, famoso na voz de Eydie Gorme e, hoje, presente nos shows de Céu. “Isso era o que se ouvia muito na nossa casa. Nisso, ela é bem diferente do Diogo [Poças, cantor, irmão de Céu], que é mais direto, pede algo pra mim. A Céu, não. Ela pega mais a minha antropofagia, a minha pesquisa”, analisa.

Edgard toca violão na regravação de “Palhaço”, de Nelson Cavaquinho, no último disco da filha, Caravana Sereia Bloom, e foi responsável por um dos momentos mais emocionantes do espetáculo de estreia do álbum, em abril, quando subiu ao palco do Sesc Vila Mariana para interpretar a canção ao violão. Edgard também é autor dos versos da faixa “Carioquinha”, do álbum Tempo [2009], estreia fonográfica de seu filho Diogo Poças.

TITA LIMA + LIMINHA

Arnolpho Lima, ex-baixista dos Mutantes e dono de um currículo que inclui a produção de discos fundamentais do pop brasileiro (a lista vai de Gilberto Gil a Paralamas do Sucesso), é mais conhecido como Liminha – mas não deve demorar para ele se tornar, também, o “pai de Tita Lima”. Sua filha-cantora vem chamando a atenção da crítica especializada e já foi destacada pela BBC como “o melhor da música avant-guard”.

Mesmo sem muito reconhecimento – ainda – no Brasil, Tita fala de uma “sombra” que acompanha sua filiação. “Às vezes me sinto invisível aí no Brasil”, confessa. O “aí” é porque Tita prepara o sucessor do segundo álbum, Possibilidades [2010], nos Estados Unidos. “Aqui no exterior, pouca gente me conhece, então fico mais segura por saber que meu espaço está sendo conquistado por causa do meu som. Mas vira e mexe as pessoas me colocam como ‘a filha do Liminha’”, atesta.

HERANÇA

Mariana Aydar define como “presente” o fato de ter nascido em uma casa que respirava acordes e ritmos. As suas primeiras recordações musicais são justamente relacionadas ao seu pai e ao ambiente caseiro. “Lembro muito de ir dormir ouvindo-o tocar violoncelo. Gostava de vê-lo no palco, sempre de olho fechado e se divertindo”, rememora. Tita Lima também credita ao pai suas primeiras impressões positivas sobre a carreira musical. “Foi assim que aprendi: vendo-o e ouvindo-o tocar em casa. Eu dormia no sofá do estúdio após a escola e acho que isso me deixou com o ouvido treinado”, conta.

Enquanto, por causa do pai, a pequena Maria do Céu conhecia o bolero de Eydie Gorme, foi Liminha quem mostrou a Tita que havia música além dos limites do heavy metal, do glam rock e do grunge, seus gêneros preferidos antes de se tocar cantora profissional. Earth Wind and Fire, Marvin Gaye, Gilberto Gil e Titãs só se tornaram referências por influência do pai.

Mesmo captando só a “antropofagia” do pai, Edgar intercedeu por Céu em um momento chave. Quando Herbie Hancock a convidou para um dueto, Sting mal sabia que seria facilmente substituído por Badden Powell. “Sugeri “Tempo de Amor”. Ela me ligou, estava insegura com a composição (bonita) do Sting”. Ao telefone, Edgar contou a ligação dele com a música. “Eu e Vinicius [de Moraes, parceiro de Badden na canção], completamente embriagados e ele pediu um mi menor para cantar o seu samba predileto. E era “Tempo de Amor”. Só lamento ter enviado pra ela a versão da Elizeth Cardoso. A música teria saído diferente se o Herbie ouvisse o Badden tocando”, diverte-se.

As três cantoras garantem que as trocas musicais entre pai e filha seguem até hoje. “Gosto muito de conversar sobre música com ele e sempre que vejo algo que ele vá gostar, depois lhe conto. Mas quando eu vejo algo que ele vá odiar, penso nele na hora, mas depois eu nem falo”, diverte-se Mariana Aydar. “Meu pai sempre me atualizou e é o cara mais ligado em música da minha banda. Ele me mostra vinte vezes mais coisas do que eu a ele”, admite Tulipa.

*Matéria originalmente publicada na revista Almanaque Saraiva