Entrevista: Alessandra Leão

Yuri de Castro e Thiago Borges

O recém-lançado EP “Pedra de Sal” traz de volta Alessandra Leão, com tudo que isso implica. Adoça a boca, abre o apetite e vai embora logo, mas prometendo muito.

Passaram-se 5 anos desde que o elogiado “Dois Cordões” cumpriu o papel de apresentar Alessandra para o resto do Brasil, mesmo sendo este o seu terceiro álbum. O tempo cuidou de assentar alguns dilemas e incendiar novas inquietações, explicitadas aqui sem qualquer receio — e com paciência para aceitar o prolixo roteiro do nosso Fita Bruta — as perguntas são excessivamente longas (e todas salvas pelas respostas e pelo sotaque da artista).

O discurso que se cola ao novo registro é muito coerente com o que o EP mostra: um reposicionamento das balizas que indicam os perigos aos quais se lança o ouvinte. Alessandra caminha desenvolta sobre um cenário de incertezas, absolutamente segura da honestidade e da entrega total em cada passo: “chegar nas pessoas é um objetivo, é uma intenção, é uma motivação, mas ela não pode ser uma determinação, uma imposição.” Em entrevista em áudio ao Fita Bruta, a voz que canta afiada nem sempre se explica e nem sempre é doce quando fala sobre o que faz.

1) A sensação é a de que além das músicas, “Pedra de Sal” levanta e agita os braços dizendo “olhem pra mim e ouçam o que eu estou fazendo”. É mesmo essa a intenção, de ser quase um manifesto?

“A intenção de Pedra de Sal, assim como de meus discos anteriores, é ser umajunção de músicas em torno de uma ideia.”

2) De “Dois Cordões” até aqui já se vão 5 anos. Temos o “Elefantes na rua nova” do Caçapa, do qual você participou e que faz parte da pesquisa constante que vocês têm sobre as matrizes regionais da música brasileira. Essa pedra, bonita, não parece representar um desvio. Onde foi então que você tropeçou que fez com que “Pedra de Sal” ganhasse esse colorido novo e demorasse tanto a se materializar?

“Um monte de tombo e queda que faz você ir mudando e repensando oque faz e o que você quer fazer. Eu acho que isso é andar com o tempo mesmo sem ficar querendo se sentir presa demais a uma fase. Hoje eu sou assim. Não posso fazer uma coisa diferente do que eu sou.”

3) Tua música me dá a impressão de uma máquina de pinball. “Varanda”, do último álbum, talvez tenha me chamado a atenção pra isso. A música tem um objetivo claro como no jogo (não deixar a bola cair na fenda), mas durante a subida da bola ela vai encontrando outras pontuações, distrações. Nos fale de como você transfere a música da sua cabeça pro estúdio e pros músicos.

“Caçapa compõe usando o contraponto, que é uma técnica muito comum na música erudita, desenvolvida na música erudita, mas é uma técnica também muito usada em países da África, com as polifonias, onde cada instrumento desenvolve uma voz, tem uma melodia e essas melodias se entrelaçam”

4) Voltando pro “Pedra de Sal”, você abre os trabalhos com uma toada tradicional registrada pela Missão de Pesquisas Folclóricas, idealizada pelo Mário de Andrade. Como é que você vê essa balança na música brasileira atual? Talvez esteja aí o caminho para se refundar a música popular brasileira e ficar livre de vez da MPB enquanto rótulo?

“Quem quiser teorizar que teorize. Eu nem consigo fazer uma música pensando nesses dois conceitos, nem tampouco pensando em refundar absolutamente nada.”

5) O encontro com o Kiko Dinucci é um estalo: “é claro! como é que esses dois não tinham se aproximado antes?”. Mário de Andrade era o paulista mergulhando de cabeça no Brasil profundo. No seu disco a gente tem uma representante engajada desse Brasil se chocando com uma nova estética paulista, que se vale também de um olhar muito abrangente para essas raízes. Como foi a parceria com o Kiko? Como é que você vê e entende o que essa turma que se organiza em São Paulo tem feito?

“Quando eu conheci Kiko tive a sensação de que a gente já se conhecia há muito sanos, que a gente se conhecia desde sempre. Então eu sempre acho que a nossa amizade, as nossas parcerias não cabem nesse tempo cronológico de há quanto tempo a gente se conhece de fato.”

6) Um ouvinte descuidado que, opa, chega agora e encontra você, a Juçara Marçal –e outros artistas que lidam naturalmente com nomes e ritos próprios de uma parte afro-brasileira ainda pouco estranha pra muitos brasileiros – pode ter um tóin na cabeça. Você percebe alguma desconfiança pra cima de você por cantar e musicar um jeito um pouco mais distante do pop pouco afro-brasileiro brasileiro? Tenho certeza que uma pessoa criada longe de uma pluraridade religiosa consiga cantar o nome de Yemanjá sem estranhamento. É engraçado isso, acho. O que você acha?

“Olha, se der “tóin”na cabeça eu acho que a gente tá na vantagem. Acho que a arte serve pra dar um bocado de “tóin” na cabeça da gente e tirar a gente do lugar mesmo.”

7) Provocativamente perguntando, o que é música comercial pra você? Sua música tem refrões, sua música é emolduradamente pop. Mas como você lida com a dificuldade de transposição dessa música pr’um público maior?

8) Esses dias eu li um comentário curioso no You Tube. Um ouvinte do Criolo reclamou que ele não compunha letras que expusessem as mazelas de Maceió. Para ele, o rap paulistano é demasiadamente focado nos problemas de São Paulo. Mais curiosa ainda foi a resposta de outro usuário: “claro! Ele mora em SP e não em Maceió!”. Parece óbvio, mas a questão é que aquele ouvinte não conseguiu transportar as letras do artista pra Maceió – e basicamente temos problemas bem gerais e genéricos em todas as partes. E estamos falando de um artista divinamente pop. Bom, essa introdução foi só pra te perguntar se você tem alguma neura em relação à recepção de suas canções quando está compondo-as.

“Recentemente a gente ouviu essa pergunta, se a gente pensava no público quando tava fazendo a música ou antes de fazer. Não. Desculpem. Não penso não, eu penso em mim primeiro. É um momento absolutamente íntimo e egoísta.”

9) Além do Kiko e da Juçara, o disco tem a onipresença do Caçapa e de mais uma figura interessante dessa boa leva de autores-instrumentistas, o Guilherme Kastrup. Como é que foi a dinâmica de dirigir tantas cabeças musicalmente pensantes e o quanto cada um deles acrescentou e alterou à sua ideia inicial?

“Em algum momento, bem no início, eu pensei em fazer um disco mais só, talvez como uma forma de auto-afirmação mesmo. E eu percebi depois que eu não precisava fazer isso, que eu não tinha essa necessidade de fazer nada só.”

10) O EP percorre um arco narrativo que vai de “Doutrina e toque de Iemanjá” até “Devora o Lobo” se transformando passo a passo, sem que se perca o fio, mas, ainda assim, ele termina de um jeito muito diferente de como começou. É uma pista que indica para onde vão os outros dois EPs? Você pode acrescentar alguma dica de até onde isso vai? Por que esse lançamento vai se dar assim em 3 partes?

“A minha impressão é que eu posso aprofundar melhor cada um desses temas, cada um desses capítulos, lançando dessa forma, do que se eu fosse lançar toda essa história num disco só.”

11) A narrativa lírica da faixa-título não é tão explícita quanto à música que a conduz – de cara impressionantemente sexual, pulsante, dançante. O que te levou a compô-la? Ela é intensa. Traduz algum momento específico teu?

“Eu vou citar uma coisa que Rimbaud dizia quando perguntavam a ele sobre o que que determinado poema dele queria dizer. Ele respondia que o poema quer dizer exatamente oque está escrito”

12) Muito tem se falado sobre o lugar da voz na música brasileira hoje, a partir da problematização da emergência de uma nova onda de cantos falados e da perda de importância dos grandes intérpretes. Você tem uma voz muito marcante e um domínio da técnica que permite usar a voz como um instrumento, assim como a Juçara consegue fazer. Vocês têm um jeito próprio que se aproxima e que é muito bonito. Qual é o papel que você atribui à voz na sua música?

“Bem, muito mais do que a técnica eu me interesso por uma voz que tenha o que dizer, que tenha o que falar. E claro que a técnica é uma ferramenta superimportante para que você consiga realizar o que está no plano das ideias.”

13) Você dedica “Mofo” à cidade de Recife e ao movimento Ocupe Estelita. Como é que está a situação da luta contra a “Nova Recife” e o que você  acha dessas “novidades” que se erguem sobre um pensamento arcaico? Mofo é uma imagem adequada para pensar o que se passa na cabeça de quem se apropria do “novo” com tanta desfaçatez. De cara eu me lembrei de “A cidade cai” do Passo Torto, com quem tem uma afinidade temática, espiritual, musical, etc.

“A luta do movimento “Ocupe Estelita” acontece, no final dos contas, em Recife, mas ela não se refere só ao que acontece em Recife. Ela ecoa e reverbera em muitas outras cidades do país e em outras cidades fora do país, inclusive, que têm essas mesmas inquietações, que passam por situações semelhantes.”

14) Sua música parece caminhar para um lugar cada vez menos permeável a reduções e etiquetas. Não dá pra chamar de MPB, pura e simplesmente, quase nada é MPB mais. Não é também só uma música que a gente possa chamar de “regional” (e também não é “rock”). É uma qualidade ser difícil etiquetar? Um rótulo bem geral que agrupasse coisas distintas mas que guardam alguma afinidade teria alguma função do ponto de vista da circulação da música, na sua opinião?

“Pra mim colocar um rótulo em coisas onde eu busco a singularidade não faz o menor sentido.”

Ouça o EP “Pedra de Sal”, de Alessandra Leão:

Agradecimentos ao Deezer e à Alessandra Leão, Lígia Meneguello e Yasmin Muller.