Entrevista: Letuce

Ainda no alto da bossa gerada pelo seu segundo álbum, o vibrante “Manja Perene”, Letícia Novaes e Lucas Vascocelos sentaram numa quarta-feira de março para um papo com o Fita. O resultado foi uma conversa onde eles ampliam e detalham os primeiros anos de namoro e de Letuce. Entre espermatozoides e óvulos, crowdfunding como financiamento de liberdade e sutiãs se abrindo, a dupla conta como é viver a petulância de ser artista entre o comum e o extraordinário.

Fita Bruta: O primeiro disco, pelo menos pra mim, era mais calmo, às vezes parecia quase um disco de bossa. O “Manja Perene” é o contrário, é vibrante, quase roqueiro. O que levou a essa mudança?
Lucas: Eu acho que de bossa aquele disco só tinha o violão, ele é um disco que pode até ser mais sentido como uma coisa folk, que é uma palavra que também tomou um sentido meio bizarro ultimamente. Folk é uma coisa e virou mil coisas.
Letícia: Mas eu prefiro bossa. Sabe o que significa bossa né? É uma onda, uma cova… não, cova é para dentro [Desenha do ar uma ondulação] É uma montanhinha.
Lucas: É uma elevação…
Letícia: … é uma elevação natural, eu gosto de bossa.
Lucas: Eu nem desgosto do nome não, só acho que aquele disco não tem muito de bossa. Não tem samba, sabe? Ele tem uma coisa mais dessa onda folk, misturado com as nossas influências de rock.
Letícia: Acho é porque também a gente tava se conhecendo naquela época e o Lucas tinha uma banda, o Binário, que era super experimental. Eu também tinha uma banda de rock, então eu acho que foi uma coisa meio necessária…
Lucas: A gente começava a fazer as músicas com aqueles instrumentos e começou a dar vontade reproduzir a atmosfera de composição das músicas.
Letícia: Foi um momento importante. Para se tatear a gente acabou reduzindo tudo e ficaram meio intimistas as músicas.

FB: Mas o que levou à sonoridade do “Manja Perene”?
Lucas: A gente fez um monte de show, na verdade…
Letícia: …e, na real, a gente tem uma alma mais roqueira também.
Lucas: Talvez naquela época fizesse muito sentido porque a gente compunha muito no violão.
Letícia: Não posso falar que o samba mudou minha vida. Desculpa Brasil, desculpa Rio, mas o Rock mudou minha vida. Apesar de eu ter chorado no show do Paulinho da Viola e ter ouvido muito samba durante a minha vida, mas o rock é mais importante. E acho que a gente fez muito show nos anos que se seguiram, do lançamento do primeiro disco até aqui. E show é muito mais caloroso.
Lucas: No show você percebe porque a guitarra elétrica é o instrumento mais popular do mundo, porque realmente é ela que dá conta de subir, de crescer um show, de fazer as coisas ficarem super dinâmicas. Aí no primeiro disco, como a gente ainda não tinha feito quase show nenhum antes de lançar, eu não tinha sacado ainda o papel desse instrumento nesse projeto.

FB: Eu não vi nenhum show de vocês nessa época. Vocês faziam no violão?
Letícia: Tinha muito violão, eu tocava seis músicas no violão. Já tinha baixo e bateria e às vezes teclado.
Lucas: Mas no segundo disco sacou que no show, a guitarra e a bateria eram os instrumentos que poderiam dinamizar junto e isso foi ficando explícito. Daí aconteceu a mesma coisa, a gente quis reproduzir na gravaçãoo a atmosfera de execução das músicas, o palco, de como tá a sinergia da banda nessa hora.

FB: Eu sinto que o primeiro disco é muito íntimo. Eu sempre me sentia meio incomodado, como um furão numa festa que eu não fui convidado. E esse, novamente, é completamente diferente. Ele é aberto, vibrante, arrejado…
Letícia: Que bom! Porque a gente achava que esse segundo disco era mais bizarro…
Lucas: …Eu sempre pensei que era mais cifrado liricamente, poeticamente que o primeiro…
Letícia: …é, tem “Eu Sempre Tive Perna”, eu não pensava que alguém iria entender essa música.

Não posso falar que o samba mudou minha vida. Desculpa Brasil, desculpa Rio, mas o Rock mudou minha vida.

FB: Eu sinto que ele é mais aberto mesmo. Eu sempre penso naquela parte de “Sutiã”, “um sutiã se abrindo”. Pra mim, é meio isso. O que motivou vocês?
Letícia: Não sei, porque as sensações são tão particulares, únicas. Mas acho que a gente não forjou nada, no sentido de “aí, agora vamos fazer um disco que tenha músicas para pessoas entenderem”. A gente nunca pensou isso na nossa vida…
Lucas: …a gente forjou um monte de coisas, mas isso a gente não forjou.
Letícia: É a única coisa que não dava para forjar, pelo contrário, quando a gente foi compondo esse segundo disco a gente até pensava “Essas músicas tão muito loucas… ‘Manja Perene’, que nome maluco”. E muita gente tinha feito uma crítica até contrária a sua, “O primeiro disco era pop, agora eles estão esquizofrênicos”. Então, em quem acreditar? Eu acho que a nossa vontade era só ter mais contato caloroso com a plateia. Então, talvez, num subconsciente maluco, a gente tenha feito músicas que atinjam mais. A gente teve mais essa vontade da guitarra, de se aproximar das pessoas…
Lucas: …Entender melhor como fazer um show.

FB: Vocês se sentem passando de um projeto a dois para uma formação mais de banda mesmo?
Letícia: Sim, mas a gente sempre se sentiu assim, as pessoas que não entendiam. A gente via “Show da dupla Letuce” e a gente pensava “Nossa, até parece que vai ficar eu e Lucas no violão”. Sempre quando a gente lia isso, eu ficava achando estranho. Porque Letuce era um nome que era nosso, mas a gente tinha uma banda, a gente estava acompanhado. E no segundo disco até tem músicas da nossa banda, tem duas músicas que o Thomas [Hares], que é baterista faz parte, “Insoniazinha” e “Fio Solto” e tem uma música que o baixista, o Fábio [Lima], fez a letra, “Anatomia Sexual”.

FB: Como é o processo e criação de vocês?
Letícia: Da maneira mais livre possível. Assim, a gente tem percebido que tem acontecido geralmente de um jeito, mas isso pode mudar a qualquer momento. Eu tenho uma ideia de letra e de um início de melodia, o que é um processo contrário a reprodução humana. Eu sou o espermatozoide e o Lucas é fecundado dessa ideia, ele é quem esquenta, alimenta. Mas eu migro até ele na maioria das vezes. Nessas composições do “Manja Perene”…
Lucas: …ela faz o papel do espermatozoide e eu faço o papel do óvulo.
Letícia: Tem uma música que é só dele, “Areia Fina”, e tem “Anatomia Sexual”, que a música é dele e a letra é do Fabinho. Mas todas as outras músicas, fui eu que tive a primeira ideia. E isso pode acontecer de todas as maneiras possíveis, eu posso estar numa praia deserta ou eu posso estar no trânsito pensando em matar alguém. Então não tem muito essa, inspiração é a qualquer hora. Às vezes, eu vou dormir e antes eu pego meu celular e escrevo uma frasezinha porque eu penso “eu posso esquecer dessa frase”. Claro que a hora eu que apresento para ele e a gente vai trabalhar, a gente precisa de um lugar mais sossegado, não é no trânsito. No trânsito pode vir um esperma.
Thomas: Acho que o mais importante em se lidar com o processo de criação é saber justamente cultivar essa criação, porque muitas pessoas têm ideias e não cultivam essas ideias.
Letícia: Eu conheço muitas pessoas que tem só tem ideias e não fazem nada com essas ideias. Eu acho que eu sou um pouco metida, ou corajosa, eu não sei…
Lucas: Você encontrou um lugar de execução das suas ideias, do seu brilhantismo. Existem pessoas brilhantes que não encontraram a ferramenta para fazer esse brilhantismo chegue nos outros sem parecer uma coisa pedante, porque o lugar do artista é sendo artista. E as artes são esse lugar em que as pessoas que acham que sabem uma coisa a mais do que as outras sobre sensibilidade tem para mostrar essa sensação. É maravilhoso, sabe, essa mini-fagulha, ela pode nascer do nada e ela pode se transformar numa coisa e incrível. E tudo vai depender de um mínimo de responsabilidade que você vai ter gravando essa fagulha. A Letícia tá sempre com um gravador, tá sempre escrevendo uma coisa. Um dia ela pega esse caderno e tem um monte de coisa: é uma música.
Letícia: Eu vou acumulando aqueles escritos, aquelas sensações e num dia eu falo “Tem alguma coisa aqui”. O André Dahmer, que tem uma música nesse disco, foi no show e mandou um email “Parabéns, fiquei muito emocionado”. Daí no final ele colocou “Continue com a petulância”. Eu pensei “Que louco, tinha realmente uma petulância”, imagina, a gente é namorado, a gente faz música na nossa casa e é tipo “Ó aqui, ó: eu estou mostrando o que a gente anda fazendo na nossa casa”. Isso é uma petulância.
Lucas: A gente faz questão de aprimorar essa ideia ao ponto de transformá-la numa música, lapidar essa música, construir de uma forma que a gente ache mais elegante, mais agradável e mais instigadora…
Letícia: É uma coragem maluca…
Lucas: É uma motivação maluca…
Lucas e Letícia: …É arte.
Lucas: É um caos de motivação. O motivo para você fazer isso é completamente caótico, pouco racional e é maravilhoso.
Letícia: Filosofou.

Nessas composições do ‘Manja Perene’ ela faz o papel do espermatozoide e eu faço o papel do óvulo.

FB: Tem uma referência meio óbvia que vocês já explicitaram no primeiro disco que é a Rita e o Roberto. Vocês se sentem inspirados pela trajetória dos dois?
Lucas: Eu me sinto inspirado, representado por uma história de amor bonita. Mais do que uma história de artistas.
Letícia: Mas a gente adora. Só que não é uma coisa tão forte ao ponto da gente ficar ouvindo, não tem essa proximidade não.
Lucas: Qualquer casal que esteja junto há um tempão e trabalhe junto e faça disso uma vida maneira, é inspirador.
Letícia: E eles são pessoas curiosas enquanto seres humanos. Ela enquanto mulher, o que ela representa, o que ela fala. Ele também. Eu sou até amiga dele no Face, leio as coisas que ele escreve… são pessoas curiosas. Em relação à música, a gente é fã, mas não tem tanto essa coisa deles estarem num altar sagrado, sabe? A gente não idolatra ninguém.

FB: É uma coisa que eu comecei a pensar quando eu estava lendo um texto sobre o fim do casamento do Thurston Moore com a Kim Gordon que falava que para o mundo aquilo era muito mais do que um casamento. Era um ideal, essa coisa de manter uma relação que também é uma parceria criativa.
Letícia: Tem várias pessoas que vem para gente depois do show e falam “Ah, vocês foram feitos um para o outro”. Eu falo “Alto lá, eu não nasci pro Lucas, aconteceu”. Tem gente que dá uma delirada. É mais legal quando a gente sabe que “Tudo que é perfeito dá defeito cedo ou tarde”, que é a música do Lucas [“Areia Fina”], que fala isso. É até engraçado porque as pessoas ouvem essa música e, às vezes, ficam “Ah, será que eles vão terminar? Será que ele tá falando isso para ela”. E não, ele tá falando também, só que a gente não é perfeito, o que é maravilhoso. Se a gente fosse perfeito daria defeito cedo ou tarde. A perfeição ela é inexistente para o amor, para a música. Chega a ser chato até.

Imagina, a gente é namorado, a gente faz música na nossa casa e é tipo ‘Ó aqui, ó: eu estou mostrando o que a gente anda fazendo na nossa casa’. Isso é uma petulância.

FB: Eu estava comparando duas entrevistas, uma do primeiro disco e uma que vocês deram há pouco tempo, e tem uma coisa que você fala que é bem interessante, que marca a diferença ente os dois. No primeiro você fala que é da água e esse seria o disco do fogo.
Letícia: Eu achava que você ia falar do Darwin e do Freud, que tem também. Eu sinto a paixão mais aquática. Água é uma coisa que vai, que é corrente e o fogo, a gente pensou que o fogo ele apaga, ele não fica, ele não dura. Então, a paixão ela acaba uma hora, ela tem uma outra sensação, um outro momento. Eu acho que isso era justamente para as pessoas pensarem que agora o fogo baixou. As pessoas tinham muito mais preocupação com o nosso segundo disco do que a gente. Quando a gente surgiu no primeiro disco, a gente era eu, uma tijucana, o Lucas tinha o Binário, que não tinha feito tanto barulho por todos os lugares que agora a gente tá fazendo… era muita novidade. Aí no segundo todo mundo pensou “O que o Letuce vai fazer?”. No primeiro disco, não. Quem era Letícia, quem era Lucas? No segundo disco as pessoas fizeram uma pressão que a gente não fez, então acho que o que eu quis dizer do fogo é que ele existe, mas ele apaga. Isso aqui é o Letuce pós-fogo, o que acontece quando o fogo apaga.

FB: Essa questão do que é popular, do que é pop no Brasil é uma coisa meio difícil de definir. Ao contrário de lá de fora, onde você tem uma coisa muito mais clara na cabeça das pessoas do que é pop, aqui você não tem. Quer dizer, o “Manja Perene” é um disco pop, mas não é pop como o Michel Teló é pop. Por que vocês acham que existe esse abismo no meio desses dois pops brasileiros?
Letícia: O que é uma pena, porque tem uma coisa que acontece muito no nosso show que eu sinto muito orgulho, mais do que qualquer coisa, mais do que ganhar o cachê, é que todas as pessoas que nos servem, que trabalham para servir, seja o segurança, seja a menina que varre o camarim, todos vem elogiar. A gente fez um show em São Paulo, no Itaú Cultural, em que a gente se apresentou com umas presidiárias. Elas faziam um desfile e voltavam, era só um dia da cultura. E todas vieram falar comigo muito deslumbradas e felizes. O segurança pedindo um CD e aí eu penso em alguém em Diadema ouvindo o “Plano De Fuga”, que coisa maravilhosa. E eu fico pensando que pena, que falta um tipo de incentivo. Porque as pessoas não vão vir ao Oi Futuro, então o que faltaria para isso acontecer? Show na rua também é assim. Quando rola o Dia da Rua [Evento anual em que bandas cariocas tocam nas esquinas de Leblon e Ipanema], rolam algumas pessoas que você pensa “Essa pessoa não é minha fã, essa pessoa eu nunca vi em show”. Então rola uma proximidade maior com as pessoas, do mendigo à velhinha. Teve uma vez que uma velhinha veio ao show e ela amou. E por que não?
Lucas: Como fazer para sua música chegar em todos os lugares em que você supõe que ela seria bem aceita? Ela não chega porque ela não foi aceita ou ela não foi aceita porque não chega? Isso é um dilema de 100 anos.
Thomas: Aí a gente passa por uma questão social mesmo. Existe uma falta de iniciativa de levar a música para essas pessoas também. Elas não vão ficar na internet baixando o disco de bandas alternativas do Rio de Janeiro. E precisa de uma movimentação de várias bandas para fazer isso acontecer.
Lucas: Há um tempão são muito poucas pessoas que cuidam da veiculação em massa de coisas artísticas. Essas pessoas também mudam de cargo, também são substituídas por outras pessoas e às novas pessoas talvez queiram se configurar naquele nicho ou podem também pensar que o mundo mudou pra caramba, ficou esquisito, diferente, e não é arriscado apostar numa coisa que não é pop, não tem perfil de pop e jogar isso num lugar maneiro.
Letícia: A gente tem que contar com a sorte e continuar fazendo nosso trabalho de formiga na internet que às vezes calha de cair na graça, sei lá, de uma menina no Piauí. Quer dizer, eu sei que a gente tem muito fã no Nordeste e a gente nunca foi pra lá. Eu estou quase pagando do meu bolso, porque tem que rolar, sei que vai ter gente, porque a quantidade de pessoas que me escrevem é muito grande. Então, tem que contar com a sorte dessa pessoa, no Piauí, quando estiver ouvindo nosso som, calhar da empregada dela estar ouvindo. Tem que contar com esses mistérios mesmo, porque se for depender de algum incentivo outro…

FB: Como foi ter o disco financiado por crowdfunding?
Letícia: Foi inesquecível, sensacional, uma sensação amorosa.
Lucas: Foi uma coisa generosíssima da parte dos fãs.
Letícia: Eu lembro o dia em que ia fechar. Ficou muito tempo sem fechar, aí o Multishow falou que iria comprar um pocket show e eu pensando “Se eles comprarem, fecha”, mas eles só compraram no último dia. Eu lembro a hora em que eu pensei “Fechou. Passou.”. Eu lembro de eu ligar pro Lucas e falar “Isso vai acontecer”, de pensar que a gente iria poder gravar num estúdio foda, poder contratar o Antonio Midani, que é um engenheiro de som foda, que faz o disco da Marisa Monte, da Vanessa Da Mata. Foi muito “Uaaau, vai rolar! A gente vai conseguir!”. Foi muita emoção, foi inesquecível. A gente é muito agradecido.
Lucas: A gente é muito agradecido mesmo. Na era da customização de tudo, em que você pode escolher consumir exatamente aquilo que você quer, não é todo mundo que consegue fazer com que alguém dê dinheiro para fazer um disco em que ninguém tenha ouvido nada.
Letícia: Isso foi mágico…
Lucas: Alguém investir na nossa liberdade…

FB: Mas vocês não tinha composto nada?
Letícia: A gente tinha, mas não tínhamos mostrado para ninguém. Se o álbum tem 13 músicas, a gente já tinha 10 na cabeça, mas ninguém sabia. O que é mágico. Eles terem acatado sem ter ouvido nada.
Lucas: Eles confiaram que a gente iria fazer um disco com liberdade.

Isso foi mágico, alguém investir na nossa liberdade.

FB: Vocês estão pensando em lançar um livro juntos, certo?
Letícia: Estamos. Na verdade, não vai ser uma coisa juntos, vai ser um livro-disco meu, mas claro que o Lucas vai participar.
Lucas: Ela vai ter que me pagar para produzir o disco.
Letícia: Eu escrevo muita coisa, acho que tá na hora de eu botar pra jogo as minhas poesias, contos, textos de guardanapo, as minhas loucuras. Com uma ou outra ilustração do Lucas, mas ele tá preguiçoso para ilustrar e eu queria fazer uma trilha sonora também. Porque eu acho que quando um crítico de música critica nosso disco, eu penso “Ah, queria tanto que um artista plástico falasse do meu disco”. Pode até falar bem, mas eu queria, sabe, que a galera transasse mais uns com os outros, sabe? Crítico literário falar de um disco, que coisa foda e forte. Um antropólogo…
Lucas: Eu queria que qualquer outra profissão que não fosse jornalista ou pesquisador de música falasse do disco, isso seria do caralho. Queria que um astrólogo falasse do nosso disco.
Letícia: Aí sim a gente veria o quanto chega no popular, nas pessoas.

FB: Falando especificamente de “Fio Solto”, o trabalho da geração de vocês, seja daqui do Rio ou de São Paulo, às vezes é um muito sisudo, um muito sério. E o “Manja Perene” principalmente tem uma coisa mais leve, mais direto. Ele parece um pouco mais popular. Você acha que falta uma aproximação dessa geração com esse lado mais popular mesmo?
Letícia: Eu estou achando muito impressionante você falar isso, porque tem gente que até fala “Aí que rebuscamento”… se bem que tem gente que já falou também que é sonoro, que gruda, que marca. Eu adoro a língua portuguesa, então eu não sou muito contra o rebuscamento, então quando alguém passeia e viaja, eu adoro. Mas eu também adoro quando calha. A sorte de você ter uma iluminação básica. Porque é muito difícil fazer uma música simples, é quase impossível.
Lucas: Eu não acho a cena do Rio ou de São Paulo sisuda nesse sentido de procurar fazer o difícil. Eu acho que já tem tanto, mas tanto material sendo feito buscando o simples que quando alguém que poderia fazer mais aprofundada no seu íntimo, nas suas percepções mais pensada e trabalhadas mentalmente… Quando essa pessoa resolve fazer um simples para se aproveitar de um mercado que vai absorver esse simples, é muito mais ridículo, é muito ridículo. Pessoas que fazem uma coisinha para agradar. Você percebe os mentirosos. Outras músicas podem falar a mesma coisa, mas não ficam maneiras sem terem sido feitas com a genialidade de quem realmente sente uma iluminação da simplicidade, da elegância, do minimalismo.
Letícia: O “Fio Solto” é realmente um ideia simples, é uma coisa que quando você tá com a calcinha, fica puxando, faz cosquinha. Acho até que fui muito corajosa de ter seguido o caminho dessa letra, que era um poema. Tem gente que fica “Gente, que loucura!”.

FB: Chocada, até...
Letícia: É, teve gente que achou que eu fui despudorada. Críticos que, sei lá, tem mente de 120 anos. Acho que essa música realmente eu quis isso. Ela veio numa cadência bem simples mesmo. “Só moeda no bolso”, isso é muito bobo e muito maravilhoso e era muito meu momento naquele tempo. Eu estava pedindo dinheiro emprestado todo mês, eu só tinha moeda no bolso mesmo e desejo no coração. Mas veio de uma forma natural, nunca foi elaborada para ser uma forma simples. Ela veio sem essa forjação do simples, calhou. A nossa vida é muito simples. E muito louca. A gente vive uma bipolaridade do extraordinário e do comum. A gente vai ao banco, a gente peida, a gente faz coisas normais. Eu moro num lugar super comum, que é o Rio Comprido, eu vejo pessoas comuns todos os dias da minha vida. E aí a gente às vezes faz show e isso é extraordinário. Nossas letras tem a nossa vida da Tijuca comum e do que é fazer show, que é uma coisa muito extraordinária.
Lucas: É uma coisa deslumbrante fazer show. Eu imaginava que eu iria fazer show desde os 9 anos de idade. Eu nunca pensei que eu fosse fazer outra coisa na vida. Mó galera pensava “Vou ser jogador de futebol, vou ser astronauta”…
Letícia: Eu pensei muitas coisas, mas eu não sabia que podia cantar, não sabia que isso era profissão.
Lucas: Numa época eu inventei que isso era do caralho, que ia rolar. E de repente isso tá rolando! Eu tô com 30 anos…
Letícia: …32.
Lucas: É, 32.