Passo Torto: Além da Vanguarda

O grupo formado por Kiko Dinucci, Romulo Fróes, Rodrigo Campos, Marcelo Cabral, e agora Ná Ozzetti chega ao terceiro álbum reafirmando sua missão: confundir a música brasileira.

O Passo Torto é um caso curioso na atual cena musical brasileira. Formado por Kiko Dinucci, Rômulo Froes, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral, o grupo conseguiu produzir dois discos que, apesar da aparente complexidade de sua música, foram bem recebidos (e, talvez, não compreendidos totalmente) em diferentes camadas da crítica musical brasileira. Não à toa, o Passo Torto ganhou o Prêmio da Música Brasileira como Melhor Grupo em duas ocasiões, em 2012 na categoria MPB, e em 2014 como Pop/Rock/Reggae/Hip Hop/Funk, o que deixa clara a dificuldade em encaixar o quarteto nas narrativas anacrônicas mais visíveis ao grande público.

Depois de um projeto de ensaios abertos com Ná Ozzetti no Sesc São Paulo, o Passo Torto incorpora a presença da cantora na sua música e lança seu terceiro disco, com o inesperado título de “Thiago França”. Aproveitando a ocasião, conversamos com Kiko Dinucci sobre o novo álbum, os novos rumos do agora quinteto, as limitações do termo vanguarda e outros temas. As respostas do guitarrista abrem um bocado de debates sobre a produção de música no Brasil de hoje, praticamente implorando para serem melhor discutidos, como faz a própria música de “Thiago França”.

Passo Torto – “Thiago França”

FB: O Passo Torto acabou por lançar cada disco com uma estrutura musical bem definida: o primeiro era um disco de instrumento de corda acústico; o segundo, eletrificado. O que mudou no terceiro disco, foi somente a entrada da voz da Ná Ozzetti?

Kiko Dinucci: No princípio a gente ficou com medo de que o disco soasse como o Passo Elétrico, mas logo descobrimos que mesmo que a gente quisesse, não conseguiríamos. A chegada de Ná também levou a coisa pra outro lugar, além de cantar todas as músicas, ela também compôs conosco. No momento em que você propõe uma parceria, uma nova forma se cria. É como um casamento, juntar os móveis, construir uma casa, ter um filho, ganha uma proporção diferente. No fim, o Passo Torto foi pra outro lugar, tanto as canções como a sonoridade, ficaram bem diferentes do Passo Elétrico. Acho que as guitarras/baixo/violão são muito mais elaboradas. Outra coisa que experimentamos bastante nesse disco é a desconstrução tonal da canção, Ná canta em um tom, mas as vezes estamos tocando em outro, mas isso dialogando com o campo harmônico em que ela está cantando, isso foi novo pra nós também.

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FB: A temática das faixas dos discos anteriores também parecia muito bem definida. “Passo Torto” nos parece um disco sobre a Cidade, enquanto “Passo Elétrico” parece ser um disco sobre o Cidadão. Vocês concordam com essa percepção? Este disco mais recente seria sobre algo?

Kiko: Não consegui ainda achar uma unidade temática nesse disco, como tem os outros discos, nunca pensamos nesse assunto ou fizemos isso propositalmente. Mas acho que é ao contrário, Passo Torto é sobre o cidadão (“Samuel”, “Cidadão”) e Passo Elétrico sobre a cidade “doente”. No disco Thiago França, se você notar, tem alguma ligação com o “Encarnado” da Juçara Marçal, enquanto o disco de Juçara fala sobre a morte, o disco novo do Passo Torto fala sobre o morto (“O Cadáver”, “Beth”, “Perder Essa Mulher”). Talvez “Thiago França” fale da cidade do Passo Elétrico que antes era doente, mas agora está morta. É o sepultamento da cidade.

Talvez “Thiago França” fale da cidade do “Passo Elétrico” que antes era doente, mas agora está morta. É o sepultamento da cidade.

FB: Há uma brincadeira óbvia no nome do disco, dado que Thiago França está presente em quase todos os discos do grupo em volta do Passo Torto. Em “Thiago França”, ele está só no nome. Além da piada interna, há algo a mais por trás do título do álbum?

Kiko: Thiago esteve presente em todas as gravações do Passo Torto e não tocou em nenhum. O Passo Torto tem um dogma, que não pode ter participação de outros músicos. No entanto, como o nosso núcleo sempre produz muitos discos, as pessoas acabam se confundindo e achando que o Thiago toca no Passo Torto, perguntam pra ele até sobre o preço do cachê. Nós achamos isso muito louco, mostra que as vezes o contratante nem ouviu os discos pra descobrir que o Thiago não está em nenhum deles.

Uma vez um cara ligou pro Thiago e falou: quanto custa o show do Passo Torto? O Thiago respondeu: Mas eu não toco no Passo Torto. E o cara mandou: ué, então pergunta pro Kiko, ele não tá aí junto de você? Por conta dessa confusão, tivemos a idéia inicial de botar a cara do Thiago na capa, mas depois pensamos em botar o rosto da Ná e deixar o Thiago apenas como nome. Achamos estranhamente divertido botar um nome próprio no disco. Se você prestar atenção é mais estranho do que engraçado, as pessoas acham engraçado por conta da estranheza, não é uma piada, é um nome estranho que tira o chão das pessoas, ficam ainda mais confusas. E viemos ao mundo para confundir. Pensamos também que seria um jeito de prestar homenagem ao Thiago de uma forma que não fosse careta.

A Ná se preocupa com a arte, pra onde essa arte pode ser levada diante de um abismo

FB: E além do nome, Thiago França está de outra maneira presente no disco?

Kiko: Somente no nome. Ele foi na gravação do disco e como sempre não tocou nenhum instrumento. É como se ele fosse um músico do “4:33” do John Cage. Achamos essa situação estética do Thiago como músico-fantasma do Passo Torto muito perto das artes plásticas, mais precisamente da arte contemporânea.

FB: A entrada da Ná Ozzetti no processo de composição e produção das faixas modificou a música do Passo Torto? O que mudou?

Kiko: Essa eu já respondi lá em cima. Mas acrescento que a Ná é uma grande artista, além de ser cantora ou músico, é uma artista. Tem coragem e disposição pra navegar por mares perigosos. Não é qualquer um que tem essa coragem. Ela se preocupa com a arte, pra onde essa arte pode ser levada diante de um abismo. Ficamos com a impressão que ela sempre foi um Passo Torto, trabalhou conosco com muita naturalidade e nunca se chocou com a nossa loucura, muito pelo contrário, tirou de letra e ainda propôs pra gente novos caminhos, deu opiniões importantes. Isso sem contar do prazer que é de estar ao lado de uma pessoa tão incrível como ela.

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FB: Os integrantes do Passo Torto são muitas vezes identificados a uma cena musical que alguns jornalistas/críticos chamam de “Nova Vanguarda Paulista”. O termo vanguarda também aparece no release do disco, escrito pelo Caçapa. Sabendo das limitações e limites desta denominação, ao convidar a Ná Ozzetti, uma das maiores cantoras da chamada Vanguarda Paulista, o Passo Torto de certa forma assume essa caracterização?

Kiko: Devo observar que nunca nos chamamos de vanguarda, o que diz que somos vanguarda é o texto do Caçapa. Aqui no Brasil pensamos em vanguarda como um gênero historicamente antigo, das vanguardas européias do começo do séc. XX. Noto que lá fora, o tema avant-garde é usado com mais naturalidade ou com menos peso, o Metá Metá na europa na Europa é constantemente chamado de Avant-garde, o John Zorn e o Philip Glass também, notamos que não temos um gênero definido ou comum nesses três exemplos, pra mim não tem problema, desde que o termo não te limite num gênero fechado.

Se um crítico quiser investigar o Passo Torto, vai perceber que viemos de outro processo

Sobre nos compararem com a Vanguarda Paulista, acho um caminho mais preguiçoso da crítica. Com quem parecemos? Com o Arrigo, Rumo, Premê, Itamar? Eu acho que não parece nenhum desses casos. Se um crítico quiser investigar o Passo Torto, vai perceber que viemos de outro processo. No Passo Torto, temos também influência do Paulo Vanzolini, do cinema do Tsai Ming-Liang, do do Sonic Youth, dos contratempos do Tom Zé e da guitarra do Caçapa, acho raso comparar somente a uma escola da qual certamente também tivemos influência, mas não paramos por aí. Devemos lembrar também que esse termo “vanguarda Paulista” não foi aceita por nenhum desses artistas, Arrigo, Itamar e Rumo estavam fazendo um som bem diferente um do outro, além de a maioria estudar na USP e tocar nos mesmos espaços, eles não tinham  musicalmente uma ligação mais estreita, cada um estava na sua viagem. Eles não aceitavam esse termo, me parece raso perto de tudo que eles criaram.

FB: Mais uma vez o disco do Passo Torto é lançado gratuitamente para download no site do grupo. Há dentro do grupo alguma reflexão sobre o mercado fonográfico atual e a divulgação de música hoje em dia? Como a proibição da capa do disco “Encarnado”, pela loja do iTunes, repercutiu dentro do grupo?

Kiko: A nossa reflexão sobre o assunto é que o download gratuito é a nossa principal mídia. Marcamos shows e vendemos discos nesses shows graças a demanda que é criada com esses downloads, fechamos assim um ciclo econômico em torno disso. Acabamos também botando os discos nas plataformas, mas achamos elas ainda muito parecidas com as grandes gravadoras ou a grande mídia, embora tenhamos espaço lá, somos esmagados por Beyoncé, pela Shakira, pelo Jay Z, a realidade é essa. Mas botamos nessas plataformas mesmo assim, pensando que o disco tem que estar em todos os lugares possíveis. Agora dar exclusividade pra elas já é outra história, muito obrigado, mas não nos interessa.

Foi uma censura racial, ou foi uma censura que só cabe aos independentes? Quem tinha que responder tudo isso era o Itunes e eles não responderam.

O caso Encarnado/iTunes não influenciou na distribuição do Passo Torto, eu ainda não tenho respostas do que foi a censura do Itunes sobre o disco da Juçara, eles não responderam nem os veículos que os procuraram. Proibiram os seios da Juçara, mas liberaram os seios do Mamonas Assassinas, da Maria Gadú, do Skank. Tanto o disco da Juçara quanto ao do Jonas Sá que também foi censurado, tinham mulheres negras na capa. Foi uma censura racial, ou foi uma censura que só cabe aos independentes? Eu não sei a resposta, quem tinha que responder tudo isso era o Itunes e eles não responderam.