Marcelo Camelo @ Teatro Bradesco, 15/08/12

– Você sabia que o Marcos Mion tava aí?
– E eu sei lá quem é esse cara¹

Marcelo é uma espécie de pato da música popular brasileira. Quase feio, diga-se, posto que ao pender pra trás sua cabeça, como em um movimento para ouvir o coro uníssono da platéia, seu nariz adquire contorno ainda mais caricatural. Atualmente, ele vem cantando alegremente e arrebatando não só o cisne, o ganso e o marreco. Mas quase todos que pareciam, em momentos distintos de sua carreira, arremessar-lhe pedras como crianças que esperam o susto do animal que, em frações de segundos, troca sua pose esplêndida em passeio no lago pelo susto deselegante. Este artista, no máximo, mudou seu curso para evitar algumas dessas pedras. E isso não significa falta de peito; significa esquiva, tal como um boxer faria, tal como não pode fazer em um aeroporto, defronte a um cara valente.

“Não gosto muito de bossa nova, acho chato”, disse em 98, em entrevista ao publicitário Bruno Medina que viria, poucos momentos após, a ser seu companheiro de palco durante quatro álbuns de  Los Hermanos. Todo mundo sabe: em pouco tempo, o rapaz cabeludo de Jacarepaguá, ouvinte assíduo de Bon Jovi, passaria da sequência lá menor com ré menor para lá menor com si meio diminuto de sétima (o acorde mór de “Bloco do Eu Sozinho”) e, enfim, para “Ventura” e para sua obra-primas chamada “Dois Barcos”, do derradeiro álbum de sua banda (este texto recomenda José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski dissecando esta música em um programa chamado “O fim da canção”. Ouça). Este disco último cria e, ao mesmo, desfaz qualquer dúvida sobre o término da banda. Óbvio: ela precisava se encerrar. Ainda que Amarante tenha criado “Os Pássaros”, era mais do que produtivo o contraste entre os dois; era conflitante: um narigudo chato, prepotente e murrinha lamentando-se pelo vácuo deixado pelo sorriso da morena e um descontraído, cool com pose de galã e muito menos lento especulando indie-rock em danças e ironias vagas.

Pois estamos em 2012. Antes, claro, houve 2009. E veio “Sou”, primeiro álbum solo acompanhado de uma preguiça daqueles que já estavam acostumados a bradarem contra a horda de fãs da banda. O disco foi alvo fácil de jornalistas e alguns outros que vangloriavam-se de terem ficado acordado ainda na segunda faixa. Bobeira. Os silêncios, os ruídos, o cotidiano e, inclusive, a preguiça estavam dispostas no álbum e burro o ladrar desses se revelou em “Toque Dela”, o disco seguinte. A esta altura, Camelo já tinha frequentado notícias da Caras, da Quem, da Contigo, tal qual um Oswaldo Montenegro namorando Paloma Duarte. Aqui, era Mallu Magalhães. Mas o contrasenso era o mesmo. E o patinho, nascido pra ser feio, deu sorte: Mallu vingou-se mulher e sua carreira logrou-se com louvor de algum encaixe na prateleira da MPB que sobrevive até hoje de sucessos feitos nos anos 70 e 80. E sorte talvez não seja a palavra. Há talento nisso. Inclusive em recrutar suas companhias. Boas companhias, bons amigos e bons ouvidos para saber quem escolher.

E não há dificuldade em notar que “Voz e Violão”, espécie de subturnê de seu mais recente álbum, é uma armadilha fácil pra quem deseja se enganar. Afinal, muitos ainda não supõem Camelo como um violonista respeitável em palco. Afinal, também,  Teatro Mágico e Cícero estão aí para provar que até os que dizem que entenderam não entenderam, enfim, muita coisa. O mercado traiçoeiro como acostumou-se a ser o brasileiro transformou qualquer possibilidade de dúvida em imediata ruindade. E se Marcelo Camelo assim foi tachado é porque tentou algum caminho não muito fácil e, por ironia, é seu show de título clichê quem esclarece tudo isso.

Se sobe ao palco tão aclamado isto ainda não é grande coisa. Muitos cantores (inclusives os decadentes, inclusive o Guns and Roses, inclusive o System of a Down, inclusive qualquer banda internacional que tenha aportado em grandes festivais no Brasil) podem receber este tipo de comemoração, ainda que tenham embutido poucas canções nos últimos dias no imaginário de sua platéia. O mais importante é que cada acorde re-arranjado de suas canções o respeitam e o fazem como ícone de uma geração que iria nascer sem um ídolo.  Os 90s não foram capazes de suscitar uma banda que não patinasse muito. Foi-se Skank, foi-se O Rappa, foi-se o Cidade Negra, foi-se até o Mamonas. Nenhuma delas resistiu muito bem à virada de século. Aqui, é Marcelo Camelo abrindo um show com uma canção inédita² em disco. E chegou aqui por este motivo: sempre pareceu inédito.

Dizem que “Anna Julia” fora negada, mas é a exclusão de “Pierrot” (inclusive pedida por um gaiato no show) dos setlists do Los Hermanos quem denunciava que Camelo não queria mais gritar. “Cara, pediram ‘Pierrot’… É mole?”, divertia a platéia antes de tocar “Tá Bom”, de 2003. Quando põe-se a tocar “Dois Barcos” e alterna os acordes de forma a respeitar os graves e agudos e não provocar confusão com sua voz, quando faz a platéia descobrir um lado-b³, Camelo evoca admiração. Quando volta do bis e toca “Saudade”, peça sinuosa de seu primeiro solo, há um constrangedor silêncio ao fim da canção: a platéia não sabe aplaudir algo que não se pede aplauso, apenas silêncio (por cinco segundos, o Teatro Bradesco descobriu-o absoluto).

Acompanhado em 11 músicas pelo violinista suíço Thomas Rohrer, desde “Casa Pré-fabricada” Camelo passa a ser acompanhado em uníssono pela platéia. A histeria de antes tornou-se respeitosa com o tempo (ainda que os flashes de celulares e máquinas digitais pareçam querer impedir o sossego de quem pretende assistir introspectivamente o show). O moleque, em 98, a negar inocentemente a bossa nova é quem enfiou uma bossa radioheadiana em “4” com “Fez-se mar” que, hoje, parece natural ser cantanda com os falsetes que a voz fraca de Camelo provoca no refrão. A mesma voz fraca que evita os primeiros versos de “Pois é” muito próximos do microfone e que surge atrapalhadamente fora do tom em “Menina Bordada” é a que também parece soberana em canções mais recentes de sua carreira como “Pra te acalmar” e “Tudo o que você quiser”, esta última com contribuição magnífica de Rohrer quando junta seu arco de madeira a um batedor de claras de ovos simulando o ranger parecido ao de portões desencontrados ao vento. Logo ele, o vento, que parecia muito mais favorável a quem o cunhou em uma canção-single é, aqui, algo perdido. Marcelo Camelo não parecia saber quem ia sorrir ao sabor do lento devir. Não. O vento de Marcelo Camelo nunca foi propulsor de certezas e este é o único pesar de seu show “Voz e Violão”. Há uma ligeira impressão de conforto (mas isto a todo o momento é negado).

Isto ainda não importa. “Toque Dela” foi um dos melhores CDs de 2011. “Sou”, de 2009. Ambos com canções que soam muito diferentes sendo tocadas unicamente nos braços de quem a fez. Este, então, o grande mote do show. Camelo está longe de ser par (e ainda é um ídolo) de Jeneci, Tulipa e Curumin, figuras grandes da geração seguinte a da sua. E isto é teu mérito. Até está próximo; mas se configura menos frágil no inconsciente coletivo. O pato quase feio pode se orgulhar, agora, de ter sido um pouco errante. Voluntários ou não, os passos incertos desviaram, até agora, Marcelo de cair nos prognósticos escritos pelos homens de pouca fé.

¹Diálogo entre duas funcionários da casa

PS: desnecessários os valores do show. O ingresso mais barato custava R$90. Bem desnecessário. A visão de quem estava nas primeiras frisas era criminosa. Ainda que a acústica do teatro seja ótima, dói lembrar que a apresentação no ótimo Auditório Ibirapuera custou R$20.

Segue o setlist (os * indicam a presença de Thomas Rohrer)

1) Luzes da Cidade²

4 Era nesta canção de abertura o excessivo uso de flashes. Minha geração ainda não sabe lidar muito com os equipamentos de múltiplas possibilidades de interação.

2) Dois em um

³ Canção gravada por Milena Monteiro em disco também intitulado “Dois em um”.

3) Casa Pré-fabricada

“Cantar junto é controverso. Muitas pessoas dizem que atrapalha [referência clara à pergunta clichê que lhe é feita sobre se incomoda a cantoria maciça dos fãs], mas, por mim, façam o que quiser”

4) Samba a dois

5) Pra te acalmar*

6) Doce Solidão*

7) Janta*

8) Dois Barcos*

9) Fez-se Mar*

10) Pois é*

11) Porta de Cinema*

“Porta de Cinema” foi gravada no lindo álbum “Amendoeira”, de seu tio-avô Bebeto Castilho. No álbum, Camelo divide a faixa com Bebeto. A composição de letra espetacular, como mesmo relatou o cantor, é de seu avô Luis Souza. Ouça a versão de Bebeto aqui.

12) Tudo o que Você Quiser*

13) Menina Bordada*

14) A Outra

15) Santa Chuva

Com acordes que simulavam uma espécie de chuva no lugar da pausa que precede os versos “quem é você pra me chamar aqui se nada aconteceu?”

16) Liberdade

“Vou de novo”, disse, antes de repetir a canção na íntegra.

17) Cara Valente

Com coro exclusivamente feminino

BIS

18) Saudade

A tal do silêncio absoluto

19) Morena

20) Tá bom*

A que precedeu o grito de “Pierrot!”

21) Copacabana*