Ruspo na Casinha comendo maçãs

Era dia 19 de setembro de 2014, uma noite de sexta-feira quente em Belo Horizonte, em que um cantor pega pela primeira vez o seu violão em público, encara a plateia, geralmente pouco numerosa por ser uma estreia, e canta. Nesse caso acompanhado de uma banda. Dessa vez tendo como repertório seu primeiro disco, lançado há um ano e meio – é essa a distância do primeiro ato para o primeiro show, mesmo tendo figurado em algumas das listas de melhores do ano de 2013. Nessa noite não tinha pouca gente para ver o cantor e sua banda.  A Casinha estava cheia.

É curioso e adequado que a estreia tenha sido em BH. Curioso porque, depois de realizar “Esses Patifes” em meio a uma vida nômade, Ruy Sposati acaba por fincar os pés na capital mineira para fazer mestrado em Comunicação na UFMG. Segue sua jornada na luta pelo direito fundamental dos índios: a terra, e, de tabela, a vida. Também adequado por dois motivos: há alguns anos BH dá sinais de que pode florescer uma nova cena independente e autoral. Nisso, a Casinha presta um serviço inegável. O coletivo/centro cultural/produtora ocupa uma casa multi-funcional no Barro Preto, bairro famoso pelo comércio popular de roupas e tecidos e próximo ao centro da cidade, e tem marcado seu lugar na vida viva da cidade, servindo de palco/laboratório para incontáveis estreias. Além disso, moram em BH pessoas que são co-responsáveis, de muitas maneiras, pela afirmação do Ruspo cantor. Marina Ribeiro e Alexis Gotsis têm uma banda chamada Os Amantes Invisíveis. Ruspo e Os Amantes se conheceram pelo MySpace e em 2010 Ruy quase entrou para a banda. Calhou de BH reunir as condições ideais de temperatura e pressão.

A noite de 19 de setembro começou quatro ou cinco meses antes quando se reuniram pela primeira vez para os ensaios, no entorno dOs Amantes Invisíveis.  Marina nos vocais e teclados e Alexis na guitarra e nos samplers são os pilares, aos quais se somam Gustavo no baixo, Geovane no trompete e Gabriel no cavaquinho. As coisas só engrenaram mesmo e foram tratadas com mais seriedade quando pintou o convite da Casinha. A formação ao vivo não fica devendo em nada e ganha muito com o contraponto lindo da voz de Marina, a que Ruy se refere como sendo uma dádiva.

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Ali, sob o teto baixo de telha de amianto, Ruy Sposati recebia com sorrisos o público que chegava aos poucos. Cumprimentou os desconhecidos e deu abraços nos amigos enquanto comia maçãs. Muitas maçãs. Ele parece gostar bastante de maçãs. Quando as deixou de lado e trocou de camisa, virou Ruspo. Não que isso tenha mudado muita coisa. Essa foi, realmente, a primeira vez que fazia um show de frente para o público. A experiência anterior, segundo conta, foi na escadaria da Universidade em que estudava. O jeito de enfrentar a timidez naquela vez foi ficar de costas. Na Casinha, fechou os olhos. Se abrisse, veria um público amistoso que vez ou outra gritava coisas como “lindo”, “gostoso” e “ai se morasse lá em casa”. Embora fossem velhos clichês, o carinho da torcida era bonito e autêntico. Além da manada de nativos que foi ver Ruspo, a plateia foi reforçada por gente que veio de longe ou de muito longe para vê-lo. Amigos de Brasília, do Rio, de São Paulo e do Pará marcaram presença na estreia.

CRÍTICA Leia nossa opinião sobre “Esses Patifes”

O show de “Ruspo & Banda Proletária” no “mini-buker anticapitalista” (assim que Ruy divulgava no seu Facebook) foi bonito. Ao vivo, ali no corpo a corpo, as músicas recriam a tensão que se ouve no disco entre o tom de denúncia que aperta fundo as feridas mas que se ergue sobre um chão de esperança, com uma alegria meio nervosa. O público dançou um pra lá outro pra cá, atento ao que cantava o novo arauto do fim do mundo e, ainda assim, sorriu, fechou também os olhos e balançou a cabeça. É bem verdade que Ruspo teve mais dificuldade para disfarçar a timidez e o nervosismo sem as maçãs. No entanto, nem o sorriso sem graça ao final de cada música, os olhos se escondendo ao mirar o chão e as poucas palavras que trocou com o público foram capazes de atrapalhar a eloquência do que ele canta. Ruspo é muito reticente com a carreira que se inicia, detesta a própria voz, diz que toca muito mal, que não é parte do “mundo da música”, não tem grandes pretensões e, por essas e outras, não acha que esse seja o melhor cenário para levantar a sua bandeira. Talvez ele esteja enganado, mas isso é um palpite. Quando lançou “Esses patifes” foi referendado pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, a voz que se levanta com maior força na defesa dos índios e da vida, na contramão do, assim chamado, progresso. São muitas as formas de se produzir barulho e os aplausos que recebeu na Casinha se somam ao coro: tudo vale a pena.

Ruspo & Banda Proletária tocaram um setlist de 15 músicas, das quais só a metade é do seu disco de estreia. Nessa parte, foram devidamente acompanhados pela plateia. Na outra, deixaram todo mundo em silêncio interessado. Por exemplo, ao se perguntar “reforma agrária, quando?” em “Edileuza“, da época em que assinava Ruspô Capistrano e que foi gravada no EP “Novo” d’Os Amantes Invisíveis. Em uma faixa inacabada, emendaram um trecho de “The boy with the arab strab” do Belle & Sebastian. As faixas inéditas são material para um próximo disco, que, com sorte, sai ainda esse ano. Dos parceiros Amantes, tocaram a inédita “Sem sangue, sem dor”. Voltando aos parceiros, Marina já havia participado da faixa EUA no “Esses patifes”, enquanto Alexis tinha feito a masterização do disco. Ruspo é carinhoso com os amigos e reconhece o quanto foram importantes para que “Esses patifes” se concretizasse. Ele se autoproclama “entusiasta de um amadorismo ostensivo”, contra o qual se mobilizam Marina e Alexis. Sem eles, talvez também não houvesse o disco, nem banda, nem show. Há uma nítida cumplicidade entre os dois no palco. Sorriem um para o outro a cada vez que Ruspo comete um erro. Não foram os graves os erros, todos eles absolutamente perdoáveis. Passariam quase despercebidos se o líder da coisa não os entregasse, balançando a cabeça ou fazendo careta em reprovação. Falta traquejo.

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A festa ficou completa em “Chatuba do Agroboy”, ilustrada de forma irrepreensível por um amigo que calçou as botas e botou na cabeça o chapéu do agronegócio para dançar a bela coreografia de propaganda de trator, que você aprende aqui para não fazer feio no próximo show. Ruspo se incomodou com o calor, perguntou se não podia abrir a janela que ficava no fundo do palco, deve ter sentido falta das maçãs ao longo do show, que passou rápido demais para quem assistia. No bis, duas ou três músicas repetidas, devidamente justificadas pelo fato de a banda “não ter ensaiado outras”. Não terem tocado Filomena, Tekoha e Anastácio foi um golpe duro para quem queria ouvir o disco todo, é verdade, mas as justificativas são compreensíveis. Parte das ausências foi forçada pelo triste episódio da apreensão do computador de Ruy pela Polícia Federal em Sidrolândia (MS) quando cobria um ato de reintegração de posse. As bases das músicas estavam naquele computador e algumas delas ainda não foram refeitas. Como disse o Yuri aqui no Fita (resenha Esses Patifes): “por onde anda Ruy Sposati é por demais simbólico não estar a seu lado.”

Belo Horizonte colocou um alfinete no mapa das músicas de Ruspo e ficará um pouco sentida se não lhe forem prestadas as devidas homenagens que já receberam Santos, Belém, Brasília, Dourados e Altamira. Mesmo tendo ido parar em uma grande capital, Ruy mora em uma ocupação. Aprendeu com os índios que é preciso lutar pelo chão em que se pisa, antes que o céu desabe sobre as nossas cabeças. Sem que nada lhe fosse perguntado a esse respeito, disse: “não, eu não adoro maçãs”, mesmo tendo perdido a conta de quantas comeu. Colocou em risco esse relato, questionou tudo que foi dito até aqui, mas não deixou dúvida sobre duas coisas: nasceu um artista e o show foi lindo.

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Lunaé Parracho