Alice Caymmi | Alice Caymmi

Mil clichês cairão à tua direita, mil odiadores à tua esquerda e, mesmo assim, conto com isso, você, leitor, não será atingindo. O disco a seguir tem um sobrenome famoso, usa um dos expedientes que adquiriu de forma hereditária e possui uma regravação de Bjork — além de tudo, tem 22 anos.

Assim que eu lhe contar que os 22 anos de Alice Caymmi desdobram-se no baixo-cantante para interpretar canções como “Água Marinha” ou mesmo uma de seu avô, “Sargaço Mar”, resista. Eu sei, eu sei. Você já tá grandinho e cansado de ver e ouvir boa vontade se convertendo em arte por quem usa o exagero como método de louvação — ao invés de reparar quão cansado anda o redor. Não é o caso aqui. Alice parece ousada pro mercado. Mas é preciso notar que, talvez, seja reflexo. Dos bons.

O mar, por exemplo, é reflexo na estreia de Alice. Quando se olha à lâmina d’água, porém, o auto-intitulado trabalho não se enxerga na verossimilhança dos trabalhos pop contemporâneos daqui. É dono de si e não de versões (Alice, por exemplo, assina quase todas as canções). Assim, o álbum se inicia com a já citada “Água Marinha” e a tempestade não estão na letra senão na música — e é sintomático que abra o disco já que é peça de produção única entre as mulheres – e homens – do recente pop brasileiro. “Medulla”, álbum da islandesa Björk, mudou a percepção musical de Alice e é evidente que suas gravações nesse debute tentam demarcar as qualidades de forma conceitual para que não sejam apenas boas ou ótimas referências diluídas em uma porção de canções ruins.

Com um dos acordes da versão autoral de “Santa Chuva”,  Alice e os arranjos de Flávio Mendes constroem em “Rompante” um épico que é, naturalmente, uma continuação da família na música popular brasileira. Citar a música de um outro compositor aqui não é comparação; é demonstração de como a música pop brasileira desperta resultados quando se aproxima sem amizade com outra obras. Alguns artistas vão percebendo isso com maior sagacidade que outros e passam a dialogar na cara-de-pau, sem coleguismo, com referências aleatórias. Camelo fez dois álbuns em que quis fazer uma canção ou outra que pudesse ser de Alceu Valença ou de Moraes Moreira. Disse, por exemplo, que bossa nova era uma porcaria em 1999. E aprendeu com o tempo a se apropriar de tudo isso e dar função e direção a sua obra. Já não estão aproximando SILVA do Guilherme Arantes? Se isso não é cara-de-pau (das boas), eu não sei mais o que é. Aqui, Alice não precisa disso porque possui o reflexo de um tipo conceitual de canção que vem naturalmente, sanguíneo. Mas não fossem as estratégias aleatórias (sua exigência com os arranjos ou os pares cariocas com os quais passou a desenvolver-se ou sua fascinação por Björk ou seu receio – e depois ato natural – em citar a família Caymmi), Alice não desenvolveria uma das surpresas do ano.

A regravação sensacional de “Sargaço Mar” com a intervenção de uma bateria eletrônica irrompendo uns sem timbres,   a música que por causa do tom desolador parece destinada a alguém mais óbvio mas é para sua mãe — e é sobre o corte do cordão umbilical, “Mater Contínua”, o metalinguístico samba-reggae (grande exceção rítmica do disco) da ode à vida de músico “Tudo Que For Leve” ou a parceria inusitada com Paulo César Pinheiro, em “Arcos da Aliança”, são todas faixas de uma intenção: Alice Caymmi não é gratuita. Esta condição motriz da arte aqui se configura tanto ao pé da letra (sob responsabilidade do selo Kuarup, esta estreia é quase impossível de se achar para download ilegal e está escondido para audição na página profissional com 500 curtidas no Facebook) quanto figurativamente – e é nisso, insisto, que há um contrasenso: ainda que você conheça não só o sobrenome (e também o pai, o avô, a tia etc), mas, inclusive, o autor da foto da capa (Jorge Bispo, fotógrafo que já é quase um sabonete Lux da cena independente), esta estreia de Alice Caymmi não é um produto apenas da sua facilidade em entrar em estúdio, produzir um disco. É um dos melhores álbuns do ano.