Burial | Kindred EP

Burial

Kindred

[Hyperdub; 2012]

8.8FITA RECOMENDA

ENCONTRE: Hyperdub

por Rafael Abreu; 12/03/2012

É engraçado que o Burial tenha surgido no radar de muita gente, lá pelos idos de 2006, como “Uma introdução ao dubstep”. Engraçado (curioso) porque o rapaz não é tanto o abre-alas de um gênero – hoje um estilo, na conotação fashion da palavra – quanto o abre-alas de si mesmo. Dizem que Burial faz dubstep – é outra coisa.

É fácil que equívocos como esse se repitam, inclusive, com um trabalho como “Kindred”: que o enquadrem como um “disco de eletrônica”, com todo o ranço tecnicista que isso eventualmente acarreta; que o abordem antes como a realização máxima de um gênero que o desdobramento de uma voz, uma incongruência; e que falem de coisas – não sei bem como tratá-las – como “Loner” ou “Ashtray Wasp” apenas como faixas. E tudo isso vem da ignorância de não perceber que “Kindred” é apenas um disco (sem adendo, sem aposto) e que Burial é tanto um músico quanto um ficcionista, um criador que, nessa altura do campeonato, já passou do ponto de apenas inventar um mundo próprio: a etapa atual é de desdobramento, mergulho profundo em si mesmo. Um disco egoísta, portanto, e muito bom nisso, enquanto estamos no assunto.

É por isso mesmo que “Kindred” é um disco formado por composições, no sentido mais grave e mais antigo da palavra, o que pressupõe que tudo, aqui, tenha surgido com um senso de unidade inabalável. Trata-se, então, de um EP de canções-edifício, cada coluna essencial à sustentação da estrutura, com um bocado de material que, subterrâneo, mal se ouve. Pode ser que a tecnologia impeça o ouvido de perceber isso, mas há certo classicismo no modo com que Burial parece ter delineado, logo abaixo do centro físico de sua música, um “centro oculto”, um universo úmido, periclitante e quase sempre grave, responsável pelo senso de assombro que perpassa grande parte do disco. A experiência de ouvi-lo pode até ser outra – a do inesperado sutil, da guinada suave – mas dá pra imaginar que o processo do rapaz não tome em conta a “descoberta” de músicas tanto quanto a conjuração e o planejamento – frio, controlado – delas, tudo prescrito e calculado por quem cria. O jogo que William Bevan – o dono do eu-lírico um tanto mórbido que estampa a capa do disco – faz é o de bonecas russas, o de ir abrindo sons tão preciosos em si mesmos quanto introdutórios, absolutamente grávidos por conterem, dentro de si, outros invólucros, etapas por que se passa até chegar à catarse menor, maciça e irredutível, que existe em cada uma das três faixas. Em domínio de cada uma delas, Bevan dispõe as bonecas – fragmentos de textura, samples vocais distorcidos, névoa sonora e quetais – lado a lado, as embaralha, some com algumas e revela outras.

O êxito do disco, nesse processo, é não se basear, nunca, numa lógica de pequenas surpresas (truques) que acabariam fazendo do ouvinte desconcertado um ouvinte maravilhado, impressionado. Ainda que se trate do lançamento mais ousado do londrino, cada “surpresa”, aqui, é gradual: pra citar um só faixa, entre o sintetizador grave com quê de orquestra, uma seção final vocal e fantasmagórica e o “convencional” de uma batida e uma linha sintética nervosas de “Loner”, vão deslizando chiados, eletricidade estática, pancadas cheias de eco e lâminas de metal cruzando o ar, sem que nada disso se transforme em entulho ou efeitos especiais. Imprevistos no papel, essas interferências se afirmam inevitáveis, vão e vêm muito suaves, à medida que as canções progridem.

Discretamente corajoso, enfim, “Kindred” é o produto de alguém que faz música pouco se importando com o mundo. Se desenvolve à parte de expectativas de gênero, suaviza um possível jogo de “novidades” sonoras e mais se afirma do que nega convenções, modelos, parâmetros. E acaba mudando o mundo em que se vive, no meio tempo.