“Eslavosamba” tem a leveza de um desfile e a aspereza de uma construção. Ora parece ter brotado de uma deliciosa roda de pagode com os amigos no quintal de casa, ora parece ter sido desenhado no gabinete de estudos de um engenheiro. O álbum de estreia de Cacá Machado inaugura um momento na vida desse professor de história que tem há mais de 20 anos dedicado sua pesquisa à música. Outro universo, talvez um novo ambiente, diferentes públicos, e, ao invés do tapinha nas costas e o reconhecimento do mérito acadêmico, aplausos.

Cacá sabe bem onde pisa e não poderia estar mais bem acompanhado. Ele compõe, canta, toca violão e escala o time. Arquiteto do projeto, tem ao seu lado dois braços direitos: Romulo Fróes, o engenheiro-chefe, assinando com Cacá a direção artística; e Gui Kastrup, mestre de obras e diretor musical. O que se constrói é um enorme viaduto que liga zonas distantes da cidade: a intelligentsia acadêmica representada por Zé Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski; a ainda marginal vanguarda paulistana, nas figuras de Arrigo Barnabé e Ná Ozzetti; intérpretes de diferentes tempos e escolas, como Elza Soares, Celso Sim, Marcia Castro e Luciana Alves; e a “nova vanguarda paulistana”, na falta de um nome melhor para a turma do próprio Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Juçara Marçal e de tantos outros.

Os sambas de Cacá são eslavos por brincadeira e por devoção. As três razões de ser do nome são a alusão aos afro-sambas de Baden, a ascendência indo-europeia patente no sobrenome de vários dos envolvidos (além dos já citados Kastrup, Wisnik e Nestrovski, tem também Climachauska, Nikitin e Stolarski) e a etimologia da palavra, que quer dizer “escravo”. Aponta para o berço do samba e para a sua capacidade de sintetizar esse país ao transitar indiferente por classes, raças e credos, símbolo de nossa democracia musical. Cacá é do samba, e, assim, tem a fineza de não se fazer senhor de engenho. Ele é mais um, abrindo espaço para que todos dancem.

Mais do que a soma disso tudo, “Eslavosamba” é o resultado da sólida formação musical de Cacá Machado. Um disco de samba sofisticado, com uma produção impecável, mas que oscila entre a vontade de ser popular e a vocação de ser erudito. Embora a variação seja deliberada e faça com que agrade aos ouvidos mais exigentes, ela acaba por enfraquecer o conjunto, que por vezes soa elegante e contido demais. O trânsito nesse viaduto recém-inaugurado que se eleva sobre os muros da academia parece fluir melhor na mão que vai de dentro para fora e coloca todo mundo junto e com os pés no chão, sambando. Na mão contrária, ao trazer todos para o lado de dentro, a alegria do batuque ganha ares de recital e faz lembrar que nesse meio, infelizmente, até o maior dos esforços se reduz a uma linha no currículo Lattes do seu autor.

Muitas faixas mereceriam nota de destaque, mas nenhuma parece mais representativa de onde podem chegar os eslavosambas de Cacá quanto “Sim”, que abre o disco. A percussão marca o terreno do samba enquanto a melodia vai se construindo nas linhas de baixo, guitarra, violão e cavaquinho, explorando os contrapontos e conversando com o dueto formado por Elza Soares e Zé Miguel Wisnik. A escolha do par não podia ser mais feliz. Elza é um bem a ser tombado pelo patrimônio histórico e cultural. Ela vem como uma gata trançando por entre as pernas dos ouvintes desatentos, sempre pronta pra mostrar as garras. Wisnik, sabiamente, canta ressabiado com a urgência de quem avisa: “sim, tem que ter cuidado”.

O cartão de visitas que Cacá Machado lança é do tamanho de suas credenciais. A mão-de-obra envolvida ajuda a empilhar os tijolos dessa ponte, que, embora tenha bases muito firmes, balança. Balança porque faz dançar e porque não se resolveu bem para que lado vai. De qualquer maneira, para quem quer correr riscos na seara do samba – um risco calculado –, Cacá é o novo parceiro ideal. Se ficar alguma dúvida é só perguntar para qualquer dos nomes que compõem a longa lista que ele faz questão de destacar na contracapa, e agradecer no encarte, de “Eslavosamba”.