O esquema de lançamento e promoção de “Random Access Memories” foi tanto uma tanto uma espécie de viagem no tempo quanto um surto coletivo de amnésia. Oito anos depois do disco que destruiu a fé de muita gente na dupla – “Human After All”, na melhor das hipóteses, é um disco menor, na pior sendo pouco mais que a monotonia eletrônica morta de ganchos requentados – apareceram os robôs como se nada tivesse acontecido, e todo mundo (inclusive quem agora escreve) resolveu obedecer às suplicas de uma promoção exaustiva, exagerada, fora de realidade. Bastou uma vinhetinha misteriosa e quinze segundos de música nova pra perder não só a cabeça, mas a memória. As entrevistas com os colaboradores, os comerciais subseqüentes e todo o papo de “trazer a vida de volta para a música” eram retrôs, definitivamente, aspirações de outra época ressuscitadas na estrutura logística e comercial de uma dupla “lendária”, dos caras que fizeram o “Discovery”, dos compositores marotos de “Around the World” – mas eram também um meio de esquecimento. Toda essa loucura pré-lançamento, todo esse clima de tudo ou nada em cima deles já tinha rolado. E já tinha falhado quase consensualmente, já que pouca gente defendeu o último disco de estúdio dos rapazes.

Nessa altura, antes mesmo do lançamento de “R.A.M.”, o Daft Punk se transformava numa encruzilhada temporal. Artistas de catálogo extremamente limitado e imperfeito (de três discos de estúdio, um tão bola fora que as pessoas não acreditaram que era deles mesmos, quando vazou) munidos de egos e famas praticamente ilimitadas não é o tipo de coisa propriamente exclusiva da época de frenesi virtual que vivemos, mas virou meio um paradigma de inflação simbólica de bandas novas, vezenquando preteridas por suas versões “antigas” antes mesmo de existirem propriamente. E é ai que o tempo começa a se embaralhar, porque embora isso seja fácil de esquecer, a última aclamação justificada da dupla tinha acontecido numa época completamente diferente.

Há mais de uma década, para ser específico. Quando ouvi o “Discovery” pela primeira vez, ouvi em CD e andava com o disco, ininterrupto, em um discman. Numa época em que o maior apelo para mim era o de faixas avulsas no rádio, eu era compelido a ouvir um álbum – queimado da cópia de um amigo – de cabo a rabo, pacientemente, numa só sentada. Era o tempo do KaZaA, da infância da internet como arena musical especulativa, o principio de um furacão. E quando eu penso no tipo de idolatria que o álbum me inspirou, naquela época, e de certa forma ainda persiste como a lembrança de um sentimento, imagino que talvez só tenha sido esse o caso porque eu e o mundo éramos um pouquinho mais novos, então. Porque a verdade é que “Discovery” foi um dos últimos espécimes de um animal praticamente em extinção, o disco que dava a impressão de ser amado por todos porque a opinião era largamente monopolizada. Permanecia a aura intocável dos cânones – numa comparação zoada, o início dos anos 2000 eram a versão microcósmica dos anos 1960 de uma geração conectada, uma época em que monolitos ainda eram passíveis de existir.

O primeiro fracasso de “R.A.M.”, então, se dá no mundo real: por mais que tenham trabalhado para uma atmosfera de loucura coletiva à moda não tão antiga, a bolha estourou no momento em que o disco vazou. Rápida no gatilho, a legião de fãs que deu gás à expectativa desenfreada do disco se dissolveu em uma série de vozes discordantes, de reclamações e insatisfação.

É nessa realidade nada ideal da realidade que reside a ironia das fraquezas do disco. Pois “R.A.M.” é um trabalho sem muita imaginação, feito de múscas que acreditam piamente no poder de tudo que existe em volta e antes delas, um álbum referencial, que se sustenta (e é e deve ser sustentado, à medida que saírem mais resenhas) equivocadamente em relação a isto ou aquilo, sempre considerando que (inserir gênero, faixa, estilo ou artista), etc. Daí o fato de, para o bem e para o mal, o disco ser interpretado só pelo que não é de sua alçada. “R.A.M.” já é odiado e amado por causa de história, mercado, videografia, capa, timing, estilo e estratégias de marketing, coisas que não têm nada a ver com música. E que, quando têm, são basicamente fatores derivativos da qualidade do que se ouve, não as causas primeiras do quão boa é essa ou aquela faixa. São efeitos, não sentidos. São forma, não conteúdo.

O que é engraçado é que a própria música é contaminada por essa visão zoada de mundo em que a música é apenas uma pequena parte da beleza de um disco. Rodeados de colaboradores endeusados, Bangalter e Homem-Christo fizeram um disco de timbres vivos – em si uma dualidade ingênua que só resolve uma pequena parte de vitalidade sonora, mais descritiva que significativa – e canções mortas. Pelo bom trabalho que fizeram para afastar a discussão sobre “R.A.M.” de sua própria música, muita gente toma o caminho das referências para detoná-lo ou aclamá-lo, mas o erro resvala freqüentemente na ordem em que as coisas são dispostas. O comum, com o tipo de obra-homenagem que é, é diminuí-la por ser “datada” – argumento de uma estupidez novidadeira acachapante – ou por ser uma cópia – defesa que, sem adendos, é igualmente inocente e obtusa. Daí não ser incomum que se comparem as faixas com suas “mães”, o que só se torna efetivamente ruim quando a noção de originalidade entra em campo. Pois a verdade é que Chic, Giorgio Moroder e space disco amalucada e rock pau mole podem ser convocados para desmerecer “R.A.M.”, não como matrizes, e sim como triunfos das lógicas que os robôs emulam ao longo do álbum. “I Feel Love” e “From Here To Eternity”, por exemplo, não são canções que deslegitimam “Giorgio by Moroder” por autenticidade – desmascaram a faixa por esperteza, dinâmica de timbre, produção e até composição. Enquanto as primeiras faixas de Moroder eram construções de elegância conceitualmente prosaicas, mas monolíticas e tecnológicas, a faixa dos robôs não passa de uma masturbação desnorteada, em que as brincadeirinhas com a entrevista (a pausa quando ele diz “click”, as guitarras macarrônicas, a viagem rasa que o arpeggiator descreve) não são nada mais do que truques no máximo simpáticos, como o close nos dedos do robô que toca baixo, numa das promos de “Get Lucky”.

Que, afinal, é uma das poucas faixas em que os ganchos estão quase equilibrados: o teclado é suave e energético, o riff-moto-perpétuo de Nile Rodgers e a bateria discreta e marcada, enquanto a melodia dos vocais e o baixo sambam, um mais do que o outro. Pois, musicalmente, a maior falha de “R.A.M.” é que ele seja tomado de canções arruinadas por idéias que seriam seus inícios, não seus fins, no máximo seus meios. Em várias faixas, o que se salva é uma ideia – um gancho, um ritmo, uma melodia – e é essa única ideia que parece ditar o desleixo de seus restos, como a guitarra de “The Game of Love”. Daí a sensação tragicômica de que, preocupados em se despir dos eletronismos de discos anteriores, o Daft Punk tenha criado um trabalho de ideias em repetição, de círculos viciosos, em vez da beleza da repetição como ideia, como meio de desdobrar e aprofundar fragmentos de Barry Manilow e dos Imperials, em “Discovery”, lógica que dá as caras na melhor faixa do disco “Doin’ It Right”, que é tanto um mérito de Noah Lennox (o Panda Bear do Animal Collective) quanto da influência assumida que o Daft Punk teve na música do rapaz.

O maior sentimento que fica, ao fim de uma escuta decepcionada do disco, é o que poderia ter sido. “R.A.M.” poderia ter sido um disco interessante mesmo sem nenhum drum machine, sem nenhum eletronismo, sem nada que dissesse respeito ao Daft Punk “antigo”. Ou não, impossível saber os limites do talento. O que se tem, agora, é um disco fraco que tenta se safar pela via do “é legal porque é cafona”, do bom mau gosto, da anemia disfarçada de vitalidade, enfim.