No último mês de maio, foi enfim lançado o esperado novo disco da Gal: “Estratosférica”. A ansiedade um pouco maior por este lançamento se deve, especialmente, à atual fase da cantora: o desejo expresso de não viver apenas do seu trabalho passado, de produzir algo nos dias de hoje que não soe como um disco caça-níquel, nem que se mantenha no conforto de uma obra já reconhecida como clássica por crítica e público, como faz Maria Bethânia. De certa maneira, “Estratosférica” era esperado com a dúvida e a expectativa de um segundo disco de artista em início de carreira, confirmando que “Recanto”, seu disco “eletrônico” lançado em 2011, foi de fato recebido como um marco renovador na carreira da cantora. Estaria ali um novo começo para Gal, e “Estratosférica” seria o novo passo em direção a uma carreira mais coerente com a sua importância na história da música brasileira moderna.

É que depois de um disco destemido (ainda que irregular) como “Recanto”, esperava-se de Gal uma persona como aquelas que a cantora encarnava na década de 1970. É difícil precisar exatamente quem esperava isso dela: talvez jornalistas, críticos, fãs, colegas de profissão e, quiçá, ela mesma. De alguma forma, quando, nas conversas de botequim sobre a carreira desta mulher, fala-se simplesmente d’A Gal, parece que se remete especialmente à cantora dos discos do Cinema Olympia, do de ’69, do “Gal a Todo Vapor”. Essas personas, com todas as potencialidades musicais e modernizadoras das décadas de 1960 e 1970, formaram uma cantora ao mesmo tempo audaz e exemplar, que nos acostumamos a chamar de Gal Fatal, adjetivo mais preciso impossível.  Não é despropositada a relação entre à associação de Gal à banda Som Imaginário no início dos anos 1970 e a sua atual proximidade com produtores como Kassin e Moreno Veloso e ao jornalista Marcus Preto. Essa associação talvez elucide esta intenção na carreira da cantora – a de um retorno à glória de seu passado sem a sonoridade de ontem – mais e melhor até do que qualquer faixa de seu novo disco.

Era por uma Gal como aquela, fa-tal, que 2015, com um evidente quê de nostalgia, mas também de desejo por renovação, esperava: uma cantora que de alguma maneira se assimilasse ao Caetano dos anos 2000, consciente da audácia de seu passado, um artista cuja força estranha residia justamente no seu destemor diante o novo, o ainda-por-explorar, uma ânsia por sua vez íntegra e sem a afetação tão característica dos nossos tempos de ironia hipster, que somente um artista historicamente audacioso poderia garantir ao público.

Enfim, uma Gal que nos apresentasse um disco dela de hoje. Mas não como o “Hoje” que ela apresentou em meados dos anos 2000, um álbum que demonstrava uma cantora ainda interessada, mas que olhava com seus arranjos para o ontem. Obviamente, não há qualquer problema com o passado de Gal, inclusive o que se ouve hoje em dia nas casas da juventude ~rica~branca~esclarecida~ são discos de Gal e Caetano que vão, no máximo, até o fim dos anos 1970. Mas “Hoje” era um disco que venerava o som da Gal, quando, o que há de mais louvável na construção de discos como “Gal a Todo Vapor” é a relação que Gal estabelecia entre suas versões e os sons de seu tempo. Em outras palavras, o que até hoje arrebata em discos como “Transa”, ” Gal Costa (1969)” e outros da Tropicália ou Clube da Esquina é menos o som do que a relação sonora estabelecida entre músicos e seu tempo.

Por isso, parece haver uma suposição inconsciente permeando “Estratosférica” (assim como “Recanto”), de que é preciso retornar àquela forma dos anos 1970 em que Gal encontrou-se no seu auge criativo. Só esta missão do disco, trazer Gal de volta a esse lugar difícil de chegar, o do atrevimento e da firmeza, já o faz importante na carreira da cantora.

Contudo, como falei, a grande forma de Gal não passa necessariamente por sua fórmula, ou como era feita sua música nos anos 1970. Evidentemente, o que tinha frescor musical naqueles idos tempos já não tem mais hoje. Isso parece ser algo que grupos como Trupe Chá de Boldo, Graveola e o Lixo Polifônico e uma série incontável de cantoras órfãs do tropicalismo, apesar de suas frequentemente interessantes produções, não parecem considerar. A estrutura e estética musical daqueles anos foi superada e absorvida ao extremo e disso até mesmo os próprios artistas da época se dão conta. Ainda assim, o que não falta todo ano é um lançamento que, em seus arranjos e sonoridades, paga solene tributo aos sons produzidos no Brasil entre o fim dos anos 1960 e o início dos 1970, transformando certa parte da atual produção musical no Brasil em não muito mais do que pastiche tropicalista, por mais paradoxal que a expressão soe.

É por isso que, em “Estratosférica” (assim como em “Recanto” e nos discos de Caetano com a Banda Cê), cria-se um pacto sonoro entre quem ouve e quem produz: na tentativa de voltar a ser o que já foi, artista faz algo que nunca fez. Na trilogia da Banda Cê, isso é anunciado pelo timbre áspero da guitarra de Pedro Sá, que vez em outra corta a canção já clássica de Caetano com um ruidoso solo teletransportado de alguma faixa do Sonic Youth. Em “Recanto”, deu-se pela exploração rascunhada de uma sonoridade eletrônica, que vestia canções de letras algo tétricas sobre o cantar.

Se em “Recanto” Gal estava ali, aventureira mas de certa maneira acuada, presa a um lugar limitador, a um recanto definido por Caetano, em “Estratosférica”, por sua vez, essa exploração se rarefeita em uma série de canções que alternam-se entre inovadoras e renovadoras. O interessante no disco é que suas faixas nunca prestam homenagem somente a um modelo de canção característico da Gal Fatal, assim como nunca tentam apenas superá-lo. A faixa que abre o disco trata justamente disso. A Gal Estratosférica não quer ter medo nem esperança de ser quem já foi um dia, e por isso canta: “nada do que fiz, por mais feliz, está à altura do que há por fazer”. É claro que há aí um pouco mais de ambição do que realidade.

É com essa aspiração anunciada nas guitarras e letra de “Sem Medo Nem Esperança” que chegamos a uma faixa como “Jabitacá”, em que Gal encontra-se de frente com o que foi, o que é e o que pode ser, e vence. Isso também acontece em diversos momentos do disco , como nas faixas “Estratosférica”, “Por Baixo”, “Casca”, “Anuviar”.

Outras faixas, contudo, parecem passar por um processo de pasteurização que, a despeito da sua força lírica, acaba por vencer qualquer tentativa das composições de superar o lugar comum do que poderíamos chamar de “uma música qualquer de um disco da Gal”. Ou seja, tudo que um disco como “Estratosférica” inspirava não ser. São faixas de excelentes compositores, que só uma cantora da estirpe da Gal poderia reunir: Marcelo Camelo (“Espelho D’água”), Mallu Magalhães (“Quando Você Olha pra Ela”), Criolo e Milton Nascimento (“Dez Anjos”), Arnaldo Antunes e Marisa Monte (“Amor se Acalme”). Há algo nestas faixas, arranjadas exclusivamente para o álbum, que minam as forças latentes das composições e tudo que desejamos é conhecer as versões dos próprios compositores para suas músicas. Estas canções fazem como que a cama para o disco decolar nas faixas mais ousadas, que, em geral, dão mais certo do que as que se mantêm em arranjos mais próximos ao lugar comum da carreira de Gal Costa.

Ainda assim, a diversidade de compositores, reunida em uma sonoridade contemporânea por meio de seus produtores Moreno Veloso e Kassin, mostra-se uma boa estratégia para arejar a fase atual da cantora. Seu disco anterior, “Recanto”, soava como um exercício estético, alheio à obra da cantora, mais próximo à de seu diretor musical, Caetano Veloso. “Estratosférica”, por sua vez, apresenta-se como a incorporação desse exercício à história musical de Gal. É um passo adiante na sua carreira e, ouvindo a grande voz de Gal Costa sem medo nem (muita) esperança, não nos resta senão aplaudi-la por seguir em frente.