Kassin: Sonhando Devagar

A primeira coisa a saber sobre “Sonhando Devagar” é que se trata de um “bom” disco “ruim”.

Explica-se: tudo aqui é dolorosamente trivial, besta, bobo. Basta ouvir a primeira faixa do disco pra perceber que o carioca – famoso por ter integrado dois pequenos mitos da música carioca (Acabou La Tequila e +2) e ter produzido um bocado de gente, “boa” e “ruim” – decidiu percorrer o caminho mais longo até um disco de “qualidade”. Em “Mundo Natural”, o assunto é um sonho em que o narrador se vê predador de zebras e focas. O timbre da voz, de um artista que teima em ser cantor, é quase patética, a melodia é infantil e ainda sobra espaço para o floreio previsível de um xilofone, delicado e pontual, a conferir mais brincadeira à canção. E a música resume muito bem as ambições que Kassin se impõe, ao longo do disco, de temas igualmente inócuos – celulares fora de área, calças de ginástica, cãibras noturnas e sorver-tes – e timbres insistentemente prosaicos.

O desconcerto – e a chave da experiência de ouvir “Sonhando Devagar” – é que tudo, de alguma maneira, acaba se encaixando. Pois por mais que todas as partes se direcionem à besteira, sobra espaço pra algum tipo de catarse, por mais cômica e desajeitada que seja. E o fato talvez se dê porque, ao contrário da ironia em série que se alastrou por tudo quanto é “música” na última década, “Sonhando Devagar” seja um disco honesto. Ao mesmo tempo em que se faz óbvio o caráter simplório da construção da maioria das faixas, com um tropeço grave aqui e ali, é bastante óbvio que não se trata tanto de pose quanto compatibilidade artística mesmo. Kassin já havia mostrado esse lado no projeto que fizera com o +2, associando deboches sinceros a uma sensibilidade estranhamente comercial, sorrateiramente pop. Talvez por estar mais livre, agora – o nome, sozinho na capa, indica um modo mais próprio (não se divide com ninguém) de ver e de fazer música – Sonhando Devagar seja um filho semelhante, porém ligeiramente diferente, à maioria do que Kassin tenha feito, até agora. É, pra início de conversa, um disco menos sintético, pelo menos no sentido restrito da palavra. Se a textura acaba sendo um pouco plástica, elástica como borracha, é por instrumentos geralmente mais orgânicos; elementos eletrônicos têm menos proeminência do que se esperaria de um disco do Kassin, solitário, sem +2 ou Orquestra Imperial.

Pois bem: faltam ainda mais uma explicação e dois esclarecimentos.

O que se explica é o fato de que tenham sido usadas tantas aspas na introdução deste texto. “Bom”, “ruim”, “qualidade”. E a razão que se dá é a de que Pois as músicas, vistas como composições, pairando dissociadas de seus músicos, não são nem genuinamente ruins: são simples, descomplicadas e bastante diretas, quase óbvias. E porque, quando concretizadas, acabem carregando um pouco do certo e do errado que parece tê-las criadas. É quase como se a inteligência do ouvinte fosse subestimada e desafiada ao mesmo tempo, num magnetismo que afasta e aproxima. E que – ao menos é nisto que acredito – acaba laçando o ouvinte por uma curva mais longa.

O que se esclarece é que, por todos os motivos supracitados, “Sonhando Devagar” não é um disco profundo. O bom de que se fala aqui é o bom que diverte, que agrada, que desencadeia um bocado de sentimento – não tanto emoções, assim tão sentidas e tão marcadas – em quem o ouve. E no cerne desse tipo de qualidade não está somente o êxito de um projeto. Seus erros também contribuem para isso. É só pensar nos “acidentes de letra” do disco, como bem disse Yuri Castro, colega aqui do Fita Bruta. Mesmo sendo deboches genuínos, sem tanta pose, acabam sendo um tanto inadequados, e um tanto excessivos, considerando o cenário sonoro que os envolve. Nada de mais em sustentar uma abordagem simplória, mas há limites, geralmente ultrapassados quando ocorre alguma frase do tipo “quero transar com você no banheiro de paraplégicos”. Na melhor das hipóteses (“Calça de Ginástica” mesmo é um exemplo), resta fazer uma concessão a esse desvio e, com o tempo, até valorizá-lo, em sua estranheza. E na pior das hipóteses, sobra “Sorver-te”, uma besteira que é mais vergonha alheia do que jogo cômico.

Lembrando, é claro, que tudo aqui é “besteira”.