“Sobre noites e dias” é mais um disco que confirma o talento e a consistência da música de Lucas Santtana. Um sujeito que resiste, que não faz coro com um certo espírito medieval que paira sobre o nosso país, que não faz música do século passado e que teima em não se desatualizar. Insiste também em fazer música pop, ainda que não consiga torná-la popular aqui. Lucas lança um olhar neutro sobre nossas noites e dias, que vê beleza no que para muitos é absurdo. Para esses, que parecem ter passado os últimos 30 anos morando em cavernas e imaginavam conviver com carros voadores e teletransporte em 2014, ouvir o disco é uma experiência de deslocamento: se sentem perdidos, no futuro.

Lembra a máxima questionada por Rodrigo Amarante – “tudo que faz sucesso no Brasil é ruim” –, em sua versão “tudo que é bom não faz sucesso no Brasil”. Talvez seja por isso também que o álbum ganhe esse ar de produto para exportação. A música de Lucas Santtana aproveita o trânsito que tem na Europa e faz o caminho que parece mais curto para se fazer barulho aqui: conseguir o reconhecimento dos gringos. Por isso, também, o disco oscila. Em parte é a proposta internacional, meio sem território, de um pop eletrônico, e tem também uma brasilidade que ora se mostra, ora se esconde, e deve lhe render alguns pontos na Europa.

Essa oscilação é marca do disco, junto com a obsessão por criar uma poética da relação entre o homem e a máquina. “Human time”, que abre os trabalhos, apresenta logo todos os elementos que vão sendo retirados até que se chegue a “Alguém assopra ela”, que fecha a primeira metade. Até aí são 5 faixas, com muitos parceiros: o quarteto norueguês Oslo Strings, a musa do cinema francês Fanny Ardant, Juliana Perdigão, Omulu, Camila Pitanga (sim, ela mesma), Thiago França, Ricardo Dias Gomes do Do Amor e Letieres Leite, além dos companheiros fixos Caetano Malta e Bruno Buarque. Todos eles emaranhados em uma rede de contatos, coisa que é do tempo dos smartphones, do fim das agendas de papel, do WhatsApp e das redes sociais. É causa do sucesso dos ansiolíticos, com destaque para o amor inclassificável e sem gênero de “Funk dos Bromânticos”, candidata a figurar na lista de faixas do ano.

(Uma pergunta: até quando quem não é do funk pecisará colocar esse aviso no título das músicas?)

A segunda metade tem Bi Ribeiro, De Leve, Kiko Dinucci, Rica e Gui Amabis, entre outras participações. Segue na montanha russa que se equilibra entre a pretensão do bom cronista, herdada da MPB, e o descompromisso do qual “Amor em Jacumã”, do disco “Sem nostalgia”, é símbolo. Ali, quando Lucas alterou o verso do original “tô na minha agora”, de Dom Um Romão, para “vou dar uma bola”, ele já deixava claro que a perspectiva é livre, de mão dupla, sem reverência. Em “Sobre noites e dias”, o mais eletrônico de seus discos, os sintetizadores amarram essas duas pontas – pretensão e despretensão – projetando sua música para fora daqui, com a qualidade de não pretender se enquadrar na etiqueta MPB (nem o Caetano tem feito MPB). “Partículas de amor” e “Diário de uma bicicleta” são bons exemplos de como tratar o cotidiano, o amor e a cidade, nesse contexto pós-tanta-coisa, sem ser carrancudo, sem dar ouvidos aos comentaristas de portal. O recado é que ainda há vida e ainda é possível expressá-la com alegria em música, sem soar ingênuo.

Parte do disco foi financiada por crowdfunding, seguindo o padrão de se repensar os costumes, a tradição e os mecanismos do mercado. Lucas Santtana propõe que se utilize outra régua para avaliar o que pode ser considerado hoje música popular produzida no Brasil, para que ela volte a ser relevante e faça justiça à sua tradição. Faz lembrar, também, Tom Zé, não por acaso primo do pai de Lucas e não por acaso um filho estranho da geração da MPB, quando canta sobre a bossa nova: “No dia em que a bossa nova inventou o Brasil / No dia em que a bossa nova pariu o Brasil / Teve que fazer direito / Teve que fazer Brasil”. Sem forçar na comparação mas entendendo o movimento, “Sobre noites e dias” é mais uma etapa na obra de Lucas Santtana, esforço de fazer direito, esforço de fazer Brasil.