Já se vão 3 anos do dia em que Christiane Torloni cunhou o capítulo “hoje é dia de rock, bebê” na simpática história dos registros de pileques de celebridades. Era o Rock in Rio em sua edição de 2011. Não bastasse o gênero se resignar com um dia na vida da atriz global, como uma espécie de antessala sem graça do Projac transmitida pelo Multishow, ainda ouviu o não menos significativo “eu sou rock’n’roll, molti anni fa”. Ali estava posto o ovo que resultou em “banda Malta”, ganhadora de reality show. Tudo nunca mais foi igual.

Até “Quarup”, um acerto de contas. Não é de hoje que a Lupe de Lupe se apresenta como uma possibilidade que vai na contramão do cenário descrito acima. Nesse disco, a coisa toma uma forma desproporcional. Do tamanho da falta de sentido que é lançar um disco duplo hoje em dia. As quase duas horas divididas em 21 músicas dão força a uma cena deliberadamente marginal que se agrupa na auto-intitulada “Geração perdida”.

Eis um disco absolutamente honesto, ainda que você não goste dele. O conjunto é construído tão sem artifícios que se permite até ser ridículo, por vezes. Os elementos fundamentais já são conhecidos: My Bloody Valentine e Sonic Youth, ruído, violão, sujeira, provocações, timbres oitentistas e as letras feitas no melhor estilo “fluxo de consciência”, que permite que se encaixem clichês terríveis como “do Oiapoque ao Chuí” sem que aquilo desmereça o resto dos versos. Presta tributo à geração de ouro do rock nacional e dialoga com produções mais vanguardistas.

“Quarup” supera o bom “Sal grosso”de 2012, o que já se anunciava na elogiada versão de “Por enquanto” e no EP “Distância”. Na primeira metade um conjunto de faixas de apelo mais romântico, bem representado por faixas como “O arrependimento”, “RJ (moreninha)” e “Gaúcha”, distantes do barulho e da distorção habitual, e mesmo assim mergulhadas na angústia. As vozes não são grande coisa, mas estão na medida exata para declamar as composições de Vitor Brauer, Renan Benini e Gustavo Scholz, em que as palavras jorram com uma força impressionante, embaladas no espírito “faça você mesmo”.

A segunda parte é mais a Lupe de Lupe com a qual nos acostumamos. A ausência de sorrisos da primeira parte se mantém e a melancolia se transforma em raiva. Cadu Tenório dá as caras em “Jurupari”, e expande o alcance do que a banda faz, enquanto a ótima “Eu já venci” é o melhor cartão de visitas do álbum. Ali, onde a escolha pela posição marginal se transforma em símbolo de vitória (“minhas mãos, rudes demais / minha mente, bruta demais / o meu corpo, tosco demais / chegar aqui, já diz que eu já venci”), a banda crava a sua bandeira como representante de uma Belo Horizonte lado B. O tema está presente em outras faixas e ganhou maior evidência quando fizeram “Há algo de podre no reino de Minas Gerais”. A oposição estética com a BH lado A, da qual você tem um exemplo aqui, tem uma raiva bem-vinda e um rancor exagerado que se pauta em um equívoco. O outro lado da cidade também está carregando seu amplificador e produzindo as coisas na marra, sem ter todo esse sucesso e todos esses privilégios que eles parecem querer apontar.

“Carnaval” fecha “Quarup” de forma épica em 14 minutos de desconstrução da festa popular e deixa a sensação de que a banda pode sim ser do tamanho da pretensão que eles têm. É uma aposta difícil de fazer, mas tem um apelo popular em grande parte do que a Lupe de Lupe faz nesse disco. Ainda que isso possa causar neles um certo arrepio, Christiane Torloni poderia ter um dia de rock ouvindo “O arrependimento”, ao mesmo tempo em que “Eu já venci” poderia figurar em listas de faixa do ano. O rock cantado em português pode recuperar uma posição mais digna no imaginário nacional, ajustar qual é o seu lugar e quais são as suas pretensões, e isso passa por aqui.