Palavrantiga | Sobre O Mesmo Chão

A música cristã deve cumprir três funções básicas – na verdade, ao menos uma delas: edificar espiritualmente, exortar biblicamente e/ou adorar a Deus. É possível atingir os três pontos sincronamente, nem sempre é fácil encontrar compositores que o tenham feito, mas abdicar de alcançá-los é sempre um risco: o risco de simplesmente não soar cristão.

A introdução é essencial para o objeto em análise, o disco “Sobre o Mesmo Chão”, segundo trabalho do Palavrantiga – antes vieram um EP homônimo (2008) e o CD “Esperar É Caminhar” (2010). A banda foi alçada ao posto de salvadora do rock gospel, mas rejeita o rótulo, dizendo-se apenas “brasileira”, dando início ao contrassenso que marca o novo álbum.

“Somos uma banda brasileira de rock que toca na Igreja, que toca no bar, que toca na FNAC, que toca em casa”, dispara Marcos Almeida, em seu blog “Nossa Brasilidade”. Dono de um timbre de voz singular, Marcos é também o autor das boas melodias e harmonias que compõem o repertório do disco e a cabeça filosófica do grupo.

Lançado pela Som Livre, o CD é parte desta tentativa de estabelecer umcrossover semelhante ao praticado em solo americano: por lá é comum ver Stevie Wonder cantar músicas de caráter cristão em rádios ditas seculares ou o Switchfoot, de letras muito veladamente cristãs, ganhar o Grammy de melhor álbum de rock gospel. Traços de uma cultura predominantemente protestante, tal qual o catolicismo no Brasil – enraizado até mesmo na fala dos que foram à missa pela última vez aos 10 anos de idade.

“Sobre o mesmo chão”, canção-tema do novo disco, é hermética em seu discurso e perfeita para representar toda a obra. Fechada em uma reflexão sobre a terra compartilhada por todos, cristãos ou não, a música pouco diz sobre a figura de Cristo – central em toda obra que pretende ser cristã – ou sobre seus ensinamentos. O caminho dúbio escolhido pelo Palavrantiga é recheado de contradições – ou erros e acertos, por que não?

“Determinado ouvinte pode se apegar mais à sonoridade em si e outro se empolgar com a mensagem. Mas ainda não sabemos como isso acontece. O fato é que nem todos vão se abrir para o aspecto transcendente da nossa arte e nem por isso a sua experiência deve ser desmerecida, pois ela também é válida”, explicou Marcos em entrevista publicada na edição 37 da versão brasileira da Billboard.

Esta incerteza relacionada à recepção dos ouvintes prejudica a constância do trabalho. Em “Antes do Final”, a mensagem confessional é clara, um pedido de perdão clássico que destoa do vazio ideológico de “Branca”. A disparidade também fica evidente em “De manhã” – um dos pontos altos – e “Rio Torto”, que trata de alma, graça e salvação de uma forma bastante oblíqua.

No campo técnico, o álbum também oscila. Depois de estabelecer uma sonoridade agradável nos dois primeiros trabalhos, produzidos por Lúcio Souza, o SILVA, a banda entregou a Jordan Macedo a responsabilidade de misturar novas texturas brasileiras às demais referências dos integrantes, como U2 e The Killers.

A tal mistura, no entanto, nem sempre soa homogênea. Em “Branca”, a tentativa de samba, groove e rock não funciona. “Antes do Final”, ótima em letra, melodia e arranjo, guarda boas surpresas rítmicas e uma referência esperta a um clássico de Chico Buarque – o tipo de referência sutil que “Rookmaker”, infelizmente, dispensa. Estranhamente, esta canção, apesar de figurar no disco anterior, foi relançada – a pedido da Som Livre, acredito eu.

Em poucos momentos a banda acerta o meio termo entre o que poderia servir de experiência transcendental para uns e fruição estética para outros. Soa mesmo como um grupo de rock cristão tentando não sê-lo. Nem quente, nem frio. Um disco morno, de uma banda que pode voltar a surpreender ao decidir se desvencilhar de vez da imagem cristã – onde está a real massa de público do grupo, vale lembrar – ou voltar às próprias origens e resgatar canções como “Casa”, “O amor que nos faz um” e “Feito de barro”.

*Rafael Porto é jornalista e colaborador do Fita Bruta. Escreve no site O Gospel em Cheque.