De longe avistado, o alvo, caso a luz favoreça, traz sua sombra antes de seu próprio corpo. A mancha escura pode assustar antes mesmo se mostre vilão ou quem sabe apenas mero transeunte daquele caminho. O trilho por onde a sombra percorria já tinha outras pegadas expostas em rastro. São elas: os álbuns que carregaram uma espécie desenrolada de tropicalismo feito próximo à segunda década do século XXI (Curumin, Apanhador Só, Tulipa Ruiz e Wado, são alguns) e, por ordem cronológica decrescente, “Claridão”, álbum de 2012 de SILVA. À primeira vista, a sombra surge lenta e anunciadora. Também, contudo, não expõe muito bem os contornos de seu dono. É, portanto, ambígua.

O encontro com “Esses Patifes” é momento de decisão – e até agora não a fiz. Escrevo indeciso como se estivesse sendo abordado por um disfarçado ator no meio da avenida da cidade, me pedindo um favor que tanto pode se revelar em um simples ato que eu lhe dê gentilmente ou seja o início de uma pegadinha em rede nacional que termine com minha cara de pastel para as câmeras. Explico-lhes o porquê: a estética é atmosfera e, ainda, soe técnica frente à passionalidade, é o que conduz o exercício. Creio ser vítima de afetação o debute de SILVA e, por que, afinal, não consigo a “Esses Patifes” atribuir alguma fragilidade especialmente calculada? A resposta não está, portanto, na estética por si só. “Claridão”, aliás, foi resenhado com certo louvor aqui no Fita Bruta do qual não compartilho e creio ser insustentável.

Leia nossa opinião sobre “Claridão”

Em “Esses Patifes”, a condução da narrativa, em grande parte, só é possível por causa das escolhas estéticas de Ruy Sposati, o Ruspo. As viagens do jornalista que se dedica aos confins das lutas centrais entre poder dos afastados agrícolas contra a resistência dos esquecidos indígenas é determinante para que a eletrônica-emergente seja companheira natural das letras desoladas de Ruspo. “Esses Patifes” é um álbum em que não pesa o talento primário de Ruspo. Não importando, prioritariamente, a origem dos instrumentos ou da habilidade de quem os arranjou e executou, o álbum se mostra antes da discussão de estética e da própria linha evolutiva natural desse trabalho.

Imediato em “Esses Patifes” é a condução do álbum. Não suas referências anteriores. Discordo do termo lo-fi, por exemplo. Não há um álbum lo-fi possível no Brasil caso respeitemos a compreensão evoluída do gênero. Lo-fi não se refere apenas à uma certa falta de cuidado profissional, mas também aos filtros que podem muito bem simulá-lo. Conquanto não é cretino, ambos não estão em “Esses Patifes”. O que há neste álbum é uma fórmula quase ideal de uma vontade emergencial de gerar um trabalho condizente com o entorno coligada a uma possibilidade de estética e narrativa que parecem ser cabíveis.

Porém, não ouso, calcado em minha indecisão, louvar “Esses Patifes” — ainda veja um certo impulso gerado pela surpresa que foi a chegada meio sem referencial do álbum de Ruy Sposati. Não há padrinhos imediatos, não há gravadora, não há um amigo que tenha indicado um caminho “som do momento” para Ruspo. Pelo menos não aparentemente. E isso, claro, pode dar um certo exagero aos relatos — o possível real seduz mesmo. Quando ouço “Barão”, tenho impressão que faço bem em permanecer hesitante. Há, aqui, um erro que é pouco repetido no álbum (ainda possa parecer bem saudável ao disco essa decisão de Ruspo) e consiste em não abrir caminho para a letra zonza, que busca explicação. Pelo contrário: fecha todas as possibilidades. É uma obra fechada e inconsistente.

Porém, me traz felicidade “Anastácio”. Dentro de uma selva, a faixa é um divisor de “Esses Patifes”. É uma faixa simbólica dentro da narrativa. E é a faixa que abre, novamente, o disco para que possamos levar a sério as experiências musicais de Ruspo, além das que querem ser transmitidas claramentes nas letras. Anastácio não quer energia na sua casa introduz a voz suja de Ruspo, quase que abrindo caminhos por entre  folhas largas. Já é possível entender o personagem, a mata se abre em um reggae indígena. “Tem uns loucos que nem sei… Como pode não querer ter tomada pra ligar qualquer coisa que quiser? Furadeira, debulhador… Tá contente com a carroça… Que pobreza, que horror” segue a letra. A melhor do álbum. Se conecta com “Arrocha”, de Curumin — e, melhor, o expande.

Ao optar por uma espécie de “Meia-lua inteira” (Carlinhos Brown/Caetano Veloso) em “Tekoha”, Ruspo não dialoga imediatamente com um tributo. Outro mérito posto que Ruspo sabe trabalhar com o silêncio bem melhor do que os seguidores óbvios de James Blake, um dos mestres em ser pop e, mesmo assim, silencioso. É um processo de composição que expõe Ruspo e, assim, aproxima o ouvinte. Ruspo está vendo a cena e a gravando em um processo quase que imediato. “Altamira” tem tudo o que “Barão” não tem. De relato irônico, flui natural com a escolha das palavras e dos timbres. Do regguinho, do espetinho. É, talvez, a faixa em que Ruspo conseguiu unir as duas pontas do álbum. Nela, estão o narrador, o personagem, o músico, o jornalista e, também, a própria canção. Essa simultaneidade é algo raro no que insistem em louvar como esperto-moderno o underground do Sudeste (principalmente em adoçadas tentativas de pop feitas no Rio de Janeiro e Estados próximos).

Nessa toada, “Chatuba do Agroboy”, obviamente emulando um funk carioca (é inspirada no hino do proibidão “Chatuba de Mesquita”), é dispensável para o álbum porém não tanto como “Santos” e a supracitada “Barão”. Ainda menos inspirada e direta demais, o funk ao menos é divertido e tenta ser crua junto à letra, coisa que não sobra nos dois exemplos. “Tenha Fé”, pelo contrário, é uma das peças belas do álbum. Roça nas tentativas das aqui rechaçadas peças, porém é iluminadora no final de “Esses Patifes”. É uma belíssima leitura de “Confiança”, composição de Jorge Ben e gravada pelos Originais do Samba como bem reparou Ciro Hamen.

Por onde anda Ruy Sposati é por demais simbólico não estar a seu lado. Talvez, por isso, tenha eu dificuldade para me decidir e ir junto ao álbum, temeroso de ser contaminado por algo antes à música. Contudo, “Esses Patifes” é um álbum que nasce para ser ouvido mesmo. O estranho que me aborda na rua me pede mesmo atenção. Meu temor é reflexo do que Ruy Sposati necessita falar. Eu o escuto. Não há câmeras escondidas. Os poucos erros de “Esses Patifes” são oriundos do afã que o faz emergencial como obra de arte.  Ruspo é um narrador, não um ator. Você que se decida entre se comover ou não com o relato; ele, porém, não é tão ensaiado e bobo como o pop já-nem-tão-independente brasileiro está nos acostumando.