por Lucas Castro, nada alucinatório

De comentários do Public Enemy a ensaios sobre a importância do conservadorismo no hip hop de um atualmente desconhecido Lord Jamar, a renovação do gênero nos últimos anos tende a ser vista como um espectro, não apenas entre os mais tradicionalistas. Uma estranheza que vai do lirismo às opções de produção. E dentre todas, nenhuma é tão desafiadora como a cena ratchet, com suas batidas minimalistas saídas de um clube de strip e letras que com frequência caem mais num território assustador do que num cômico.

Eis que surgem as duas figuras que melhor categorizam a cena: o forte candidato a mau garoto de Compton, YG, e o produtor DJ Mustard, hipnótico, econômico e sobressalente como deveria ser quem domina este tipo de batidas. Os dois já tinham feito uma série de mixtapes colaborativas não muito respeitáveis, o que, considerando estarmos na era das mixtapes, ajuda bastante a levar a reputação do ratchet pra baixo. DJ Mustard já mostrava seu talento, e claro, essas mixtapes ajudaram a notá-lo como o atual produtor prolífico (acrescente aí parcerias com Rihanna, Justin Bieber, Trey Songz, Jennifer Lopez, Rick Ross e Kanye West só esse ano) de hip hop/R&B; YG, no entanto, era só um garoto sem personalidade; na melhor das hipóteses soava como uma versão genérica e desengonçada do Lil’ Wayne.

O disco de estreia de Keenon Jackson, portanto, chega agora com uma série de desafios, que vão para além de ser o projeto a estabelecer de vez o ratchet dentro do mainstream. Vamos por partes, então: há um consenso geral sobre a quantidade de rappers interessantes que nunca se provam totalmente em seus discos (um sintoma da já mencionada era das mixtapes). Controle de gravadora ou excesso de fórmulas e de higiene são apenas alguns dos motivos porque J. Cole ou Wale não estão no lugar que tanto prometiam ocupar lá em meados da segunda metade dos anos 2000. E isto é até uma vantagem para YG aqui. Em “My Krazy Life” há todo o tipo de clichê que se espera de um disco de hip hop de grande gravadora: hooks grudentos, vitrine para produtores, bangers e mais bangers e um punhado de faixas que são muito mais R&B que rap.

YG lida bem com todos esses clichês em parte porque o disco é, descaradamente, um showcase para o DJ Mustard. E como a interação dos dois é comparável a Snoop Dogg/Dr. Dre em “Doggystyle”, tanto por ser mutuamente agressiva como pelo próprio “espírito” de renovação (o ratchet de YG/Mustard talvez esteja hoje, para 2014, como o g-funk esteve para 1993), não há do que reclamar. Há de se notar também a habilidade dele com os vocalistas convidados, como Ty Dolla $ign e TeeFlii (também parceiros de Mustard), que fornecem hooks suaves sem nunca fugir a qualquer capacidade visceral de “My Krazy Life”. Eles evidenciam nessas faixas mais inclinadas pro R&B, como “Sorry Momma”, o quanto o ratchet é flexível e voltado para as rádios, sem necessariamente se diluir. O que fica ainda mais evidente em “Me & My Bitch”: trata-se de um conto moral sobre traição, com o tom multifacetado do rapper tendo uma aparência mais serena e uma batida mais tímida, mas a agressividade corre a todo o vapor quando você menos percebe. É o tipo de faixa de faixa rap que não vejo desde “Why You Wanna” do T.I. e, não por coincidência, as duas se complementam.

Curiosamente, entre tantos detalhes e contra todas as expectativas, a força de “My Krazy Life” está muito mais na sua consistência que em seus picos. Há comparações óbvias com “good kid, m.A.A.d city”, de Kendrick Lamar, pela estrutura similar de cenas específicas ligadas por esquetes. A narrativa aqui é mais convenientemente moral (assaltos com amigos, prisão, discussão com a namorada), o que não torna sua redenção menos brilhante (“Sorry Momma”, um título autoexplicativo). Entre as faixas, há o hit “My Nigga”, uma celebração à amizade após o roubo de uma casa. O conjunto é tão focado que até as faixas de R&B seguem um fluxo linear perfeito: em “Do It Ya”, YG trai sua namorada, mas em “Me & My Bitch” ele descobre que também é traído; mais tarde, com Drake, ele pergunta “Who Do You Love?”.

Não é tanto a habilidade de YG como letrista que entra em questão, mas como ele se compromete com seus retratos e põe em foco a compreensão de sua própria figura. Há algo de “The College Dropout”, de Kanye West, quando ele constitui suas personagens; YG sempre tem tempo para a humanização, mesmo que muitas passem e sejam esquecidas ao longo do disco, assim como de outras ele parece guardar algum ressentimento. Algo que se vê em “Really Be (Smokin N Drinkin)”, onde todos aqueles amigos de “My Nigga” são mera nostalgia. E o contexto se prova verdadeiro catalisador (a mesma relação Me & Bitch/Why You Wanna, de novo), quando o verso de Kendrick Lamar é uma reminiscência e prólogo de outro verso seu, em “Nosetalgia” do Pusha T.

Este é apenas um dos motivos que relatam a obsessão de YG e todo o seu time em descrever um certo tempo, falar em nome da cena ratchet como além de um subsistema fechado de rap. Então pode-se dizer que a resposta ao desafios deste disco é positiva.