Maria Bethânia | Carta De Amor

Aquele momento de fragilidade extrema do animal selvagem, acuado, perseguido, que precede sua reação violenta, surpreendente e amedrontadora, quase desesperada, um ataque arisco que revela o incômodo e o receio por uma situação de perigo. É assim que soa Maria Bethânia, dona de uma das vozes mais fortes e mais potentes da música brasileira, quando canta, vulnerável como jamais, numa voz fina e frágil, os primeiros versos de Carta de Amor.

Não mexe comigo / que eu não ando só / que eu não ando só”. É como um chocalho de cascavel lembrando que o bote logo vem. E vem. São sete minutos de Bethânia destilando seus ataques, intimidações, avisos, advertências, alertas. Contra quem? Contra quem ouve, contra quem quiser ouvir. Bethânia é como um João Batista falando no deserto da música brasileira, fazendo das suas lágrimas a água do seu oásis. Mas em Carta de Amor não há lágrima, não há água. Só há deserto e vento.

Durante esses sete minutos Bethânia dá suas credenciais. “Eu tenho Zumbi, Besouro, o chefe dos Cupis / sou Tupinambá, tenho os erês, caboclo, boiadeiro, mãos de cura / morubixabas, cocares, arco-íris / zarabatanas, curares, flechas e altares (…) Eu tenho Jesus, Maria e José / todos os Pajés em minha companhia / o menino Deus brinca e dorme nos meus sonhos / o poeta me contou”. Ela se defende e ataca. “Eu não provo do teu fel, eu não piso no teu chão / e pra onde você for, não leva o meu nome, não”. Ela devasta. “Você está tão mirrado que / nem o diabo te ambiciona, não tem alma / você é o oco, do oco, do oco, do sem fim do mundo”. E por aí vai. Não é fácil.

Carta de amor é, pode ser muitas coisas. Mas é o que é e funciona sobretudo porque é uma grande música, na qual a agressividade de uma mulher acossada – seja lá por que for, pois o que interessa mais é a universalidade das suas palavras – é refletida em palavras firmes, acompanhadas de uma percussão poderosa, intimidadora. Intercalando ritmos e timbres diferentes, declamações e refrões de melodias deslumbrantes, Bethânia nos seduz e nos submete ao seu esplendor. Durante esses sete minutos, Maria Bethânia é o ser humano mais forte da face da terra, encarnando todo o sincretismo da cultura brasileira. Nesses momentos ela se basta e nos basta. Carta de Amor ofusca tudo em Oásis de Bethânia, mostra uma mulher corajosa, ousada e consciente da sua força. Seus anúncios, seus recados não soam como bravatas. É a manifestação de um gigante. É um lembrete do lugar dessa mulher na história da música brasileira. Há de se temê-la.

Leia a resenha do álbum “Oásis de Betânia” aqui.