“Vozes invisíveis ou 2 e 1/2” é mais um registro despretensioso do hiato estabelecido entre um disco e outro do Graveola e o Lixo Polifônico. Contudo, há na verdade muito pouco de intervalo se a referência deixa de ser a banda e passam a ser seus integrantes. Explico: basta colocar os pés nas ruas de Belo Horizonte e de seus arredores para trombar com os graveolas por aí, imersos em uma intensa agenda musical, política e afetiva, da qual o show de lançamento do segundo disco, “Eu preciso de um liquidificador“, na comunidade Dandara é um marco inegável. De lá pra cá, estiveram presentes no apoio a muitas outras causas, tocaram em palcos improvisados e em “não-palcos”, produziram trilha sonora, agitaram o carnaval da cidade e produziram relatos de viagens de um produtivo intercâmbio Brasil-Portugal. Das composições que foram ficando pelo caminho nesse período, o “2 e 1/2” traz 13 faixas, livres da coerência da amarração conceitual. Um apanhado de rascunhos “gravados em vários não-estúdios”, como diz o encarte, com a participação de uma série de amigos e parceiros.

É claro que o resultado é irregular, afinal de contas, trata-se de uma “coletânea de rascunhos”. Seria possível dizer isso até à moda Forastieri, sem ouvir o disco. Porém, para entender a síntese operada pelo Graveola, vale a pena se entregar às experimentações e perceber que BH não perdeu a mão para a música popular, nem deixou passar o bonde da história. Esqueça a máxima de Otto Lara Resende que diz que “o mineiro só é solidário no câncer”. Bobagem. Deixe de lado também a impressão de que as montanhas são um convite  à introspecção. É preciso reavaliar esses lugares-comuns porque a cidade que produz o Graveola e que por ela é cantada se caracteriza, hoje, pela solidariedade e pela ação. Um mesmo estado de espírito que trouxe há 4 anos a praia para a capital mineira e que tem em “Babulina’s trip” o seu grande refrão.

Na abertura do disco, um parceiro de longa data. Zé do Poço é um cantor, compositor, videomaker, pintor e outras coisas, que talvez fosse só o cara mais famoso do seu quarteirão lá em Ribeirão das Neves não fossem a inclusão digital e o espaço aberto para a riqueza e a pluralidade da cultura popular. Com isso, Zé faz sucesso na internet. A faixa “Ouvinte” é um obstáculo que deve ser ultrapassado não sem antes ter servido ao propósito de questionar o bom gosto, carimbar um universo de referências, colocar um alfinete no mapa da região metropolitana das afinidades da banda e demarcar o espaço do disco: o que vem é música popular, sem qualquer traço de elitismo e preconceito. Zé do Poço merece a homenagem e a banda demonstra, com essa atitude, coragem e segurança ao legitimar um artista/operário que é pura intuição. O recado dado é mais ou menos “ou você percebe a beleza disso, ou não ouça o resto.”

Daí em diante é o Graveola, com suas citações, colagens, melodias cantaroláveis, sensibilidade e balanço. Um pouco menos festivo e alegre do que nos outros registros, sem perder o frescor tropical e cada vez mais ciente de que a música popular pode ser leve e superficial ou grave e profunda, dicotomia que, em geral, só se resolve no outro pólo: é o ouvinte quem decide. E aí você escuta coisas que parecem já ter sido ouvidas antes (e foram mesmo), como o verso “preciso aprender a ser só” da faixa “Envelhecer”, tomado de empréstimo de Gilberto Gil, que por sua vez já tinha pegado emprestado do Marcos Valle e seu irmão Paulo Sérgio. Um diálogo de muitas camadas, trazidas à tona por Luiz Gabriel Lopes e José Luis Braga, e cantado por Juliana Perdigão, ex-integrante da banda, de novo com um nó no peito.

Os mp3s, disponíveis para download no site da banda, têm nas tags um gênero para cada música. Cabem nas etiquetas “rock”, “canção brasileira”, “african jazz”, “new age”, e “música popular portuguesa”. Ainda que a dificuldade de classificação seja mais restrita do que as tags sugerem, tem um pouco da inspiração de cada um desses gêneros nas músicas. “Cafeína”, outra da dupla Luiz Gabriel e Zé Lu, vem com um bem-vindo acréscimo eletrônico. Faz um passeio pelos problemas da cidade e explicita seu engajamento ao dizer “e o despejo vira copa no outdoor”. Não é difícil imaginá-la no repertório de um Lenine, por exemplo, o que torna ainda mais significativo que canções tão interessantes estejam aí, em um disco de rascunhos e experiências. É também o caso de “Maquinário”, “Canina intuição”, “Até breve” e “Da janela”, esta última de Luiza Brina, nova integrante da banda, já conhecida do público da cidade por seu trabalho solo. Além das novidades de casa, cabe destaque para a versão de “A lenda do homem pássaro” de JP Simões, linda canção que veio na bagagem das viagens a Portugal.

“Vozes invisíveis ou 2 e 1/2” não é o melhor disco do Graveola, mas é o melhor dos dois meios-discos já lançados por eles. Que esses rascunhos sejam mais interessantes e mais bem acabados é um sinal de que essa síntese do tropicalismo com o clube da esquina, em um cenário pós-loshermanos, tem fôlego, tem talento e é capaz de uma produção intensa e de qualidade mesmo sem que se aparem as arestas dos seus exercícios íntimos. Dá sinais de que resiste às turbulências e que as parcerias, novas ou antigas, são um caminho a se explorar sempre. Além disso, e o mais importante, é que junto com construção de sua discografia o Graveola tem ajudado a construir uma nova cidade, não só por meio das canções mais evidentemente políticas, mas também pelas práticas de produção, pela participação ativa na vida que pulsa nas ruas e pela maneira como canta as relações humanas. Não dá pra dizer que se constrói uma “nova BH” porque a atual prefeitura, contra a qual tudo isso em grande parte se ergue, sequestrou esse nome. Mas, felizmente, pode-se dizer que a sofisticação melódica faz jus à tradição da cidade no âmbito da música popular brasileira e que, de alguma maneira, dá voz a uma enorme parcela de insatisfeitos, que, felizes, lavam a alma com os últimos versos cantados: “a necessidade de cantar / cantar só / pro meu país e o mundo inteiro ouvir”.