Death to Molly

Uma das melhores e mais importantes músicas americanas lançadas em 2012, “Bitch, Don’t Kill My Vibe”, de Kendrick Lamar, tem múltiplas interpretações. Uma delas é a música ser uma espécie de recado de Lamar sobre o estado do hip-hop americano nos dias de hoje. Há inclusive  na música trechos explícitos sobre este tema, como “I’m trying to keep it alive and not compromise the feeling we love / You’re trying to keep it deprived and only co-sign what radio does” (algo como “Estou tentando mantê-lo [o hip-hop] vivo e não comprometer o sentimento que a gente ama / E você tentando mantê-lo depravado e só concorda com o que o rádio faz”).

Mais ou menos com essa ideia em mente, o clipe de “Bitch Don’t Kill My Vibe” mostra Kendrick Lamar e sua galera indo a um enterro (todo branco, numa versão no mínimo diferente de luto) e depois comemorando (ou, como se diz tradicionalmente, bebendo) o morto em limosines (brancas). Quase no fim do clipe, a música é interrompida e uma tela preta aparece com os dizeres: Death to Molly.

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Molly, no caso, é uma gíria para a forma mais pura de MDMA, mencionada aos montes no hip-hop hoje em dia. Molly é mais ou menos como o carro importado no sertanejo universitário, o corno no sertanejo de ontem, a paixão platônica no indie brasileiro, etc. Temas recorrentes. Como é de se imaginar, todos estes termos, em todos estes gêneros, são mais menção que, necessariamente, ação. Quer dizer, o funkero talvez ainda não tenha sua hayabusa, o sertanejo o seu camaro ou o seu chifre, nem o Silva um amor de verdade. Mas eles cantam sobre isso mesmo assim.

Daí que muitos têm interpretado o enterro no clipe de Lamar como se o morto fosse o tal “shitty hip-hop” (seja lá o que isso for, já que, pra muita gente ainda, shitty hip-hop é o equivalente de any hip-hop, qualquer hip-hop). De qualquer modo, o molly no clipe de Lamar seria, portanto, uma espécie de metonímia pra toda “merda” cantada e feita no hip-hop de hoje. Quer dizer, “merda” na concepção de Lamar, claro. É como se um funkero reconhecido, como o Buchecha, fizesse um clipe e nele tivesse uma frase no fundo preto: Não à Putaria. Ou como se Victor & Léo colocassem os dizeres no seu mais novo vídeo: Morte ao Tchetcherere. Ou, ainda, como se o Tiago Pethit dissesse em alguma entrevista no jornal: Morte ao Bom-moço (opa, isso realmente aconteceu).

Lamar, mais tarde, tentou explicar suas intenções com a frase ao fim do clipe:

Às vezes você tem umas modinhas que não são tão legais. Você pode ter vários artistas retratando essas modinhas e que não possuem realmente esse estilo e aí isso dá uma ideia errada da coisa. E se torna uma coisa tipo pedante depois de um tempo. Quando todo mundo usa conscientemente agora um termo ou uma frase e põe isso nas letras, isso deixa a cultura aguada, sem substância. Então é mesmo uma hora de seguir adiante. É mesmo sobre manter o hip-hop original e afastá-lo desse tipo de afetação.

À primeira vista, parece interessante que um artista respeitado como Lamar defenda o fim de temas supérfluos, repetidos ou muitas vezes falsos como o molly e tudo que ele representa para o hip-hop (afinal, volte alguns anos e molly poderia ser o sizzurp de Lil’ Wayne). Em outras palavras, Lamar seria um artista preocupado com os rumos do tipo de música que produz.

Mas, se você parar pra pensar, essa defesa de Lamar se aproxima bastante dos ataques conservadores que vemos todos os dias com relação a gêneros como o funk, o tecnobrega, o sertanejo e, veja só, o próprio hip-hop. No fim das contas, Death to Molly é algo distante apenas temporalmente de coisas como a Passeata contra a Guitarra Elétrica de 1968. Lamar estaria mesmo, no seio de um gênero tantas vezes discriminado e criminalizado como o hip-hop, defendendo um uso mais “nobre” do flow e da temática do rap?

Não exatamente. O Molly não tem sua morte decretada no clipe de Lamar por representar algo supérfluo. Isso é até claro, já que o grupo de Lamar festeja o enterro da mesma maneira que se esperaria daqueles que usam molly nas suas letras: com closes de bundas e seios femininos, limosines e champanhes. O que ele pretende, então? Diga não às drogas, mas tudo bem se for misoginia e ostentação? Falar na música não pode, mas pôr no clipe, pode?

Na verdade, Lamar parece querer atacar a falsidade e o acúmulo de menções (segundo ele, falsas) daqueles que mandam seu flow com milhões de mollys no meio. É como se ele falasse pro Mariano: meu chapa, esquece esse carro, faz sua música e rebola aí de boa. 

Mas até que ponto a defesa de uma temática mais “nobre” (como a confissão de um pecador no início de “Bitch Don’t Kill My Vibe”) é de fato mais elevada que simplesmente falar da balada boa de hoje à noite? Fazendo um paralelo com algo já superado (ao menos dentro do hip-hop) sobre o rap: afinal, a música cantada é mesmo de alguma forma superior ao canto falado?

Trazendo a discussão para o Brasil: o que faz o sertanejo universitário menos significativo do que o sertanejo feito nos anos 1990 por Zezé? Aliás, o que fazia o sertanejo de Zezé, lá em 1993, menos significativo do que o sertanejo de raiz de Luisinho & Limeira? E o que o faz  mais significativo nos dias de hoje, o filme de Breno Silveira?

Seja ele realizado por ou contra rappers americanos, caipiras ou playboys do interior ou viúvos de Chico Buarque, o ataque a produções musicais atuais mostra-se quase sempre uma opção conservadora e ignorante. Conservadora pois ela se recusa a aceitar o desenvolvimento de estéticas, temas ou procedimentos musicais novos ou diferentes do que já está estabelecido. E ignorante porque simplesmente deixam de perceber que, se hoje os atacados são o funk, o dubstep, o sertanejo universitário, nos anos 20 era o samba, nos 50 o rock, nos 80 o rap, nos 90 o axé; enfim, quase todos os gêneros que são curtidos sem receio nestes nossos dias.