Pra não fugir do teatro religioso em que Criolo é protagonista, vamos dizer que “Convoque Seu Buda” seja quase um milagre. Escolhido como entidade musical por um público mentiroso e arrogante, Kleber Cavalcante passou os anos pós-sucesso de “Nó na Orelha” cultivando (inconscientemente, talvez) a imagem de líder messiânico dessa geração. Até encontrar com uma visita indesejada da realidade em forma de entrevista. Lázaro Ramos ajudou Criolo a virar piada num programa que, curiosamente, se chama “Espelho”. Kleber finalmente se enxergou. Riu um pouco, mas infelizmente, não deu muita atenção para o que viu.

De certa forma, é perceptível uma divisão espiritual neste disco. A melhor parte dele é a em que Criolo se comporta como um observador de cenas, em oposição ao opinador do óbvio, ao “messias do picho” no qual insistentemente se deixa transformar. Se é homem tão ligado às coisas do espírito, o rapper bem que poderia ouvir o recado que o divino lhe passa: a música em “Convoque Seu Buda” se desenvolve melhor quando não está engessada pelo discurso (engessado).

Temos a faixa-título como mandamento divino impeditivo: não há como música alguma sobreviver a avalanche de clichês “urbanos” da poesia de Criolo. “Uns cara que cola pra ver se cata mina/Umas mina que cola e atrapalha ativista” rimado sobre base fuleira cheia de intervenções inconvenientes não é a melhor forma de abrir um disco. Talvez seja proposital. Kleber sabe o que seu público quer e que isso não é muito. É provável que esse imenso vazio ideológico seja exatamente o que transformará o mito em fenômeno duradouro. Não vai ser desse jeito que o Pai vai conseguir afastar as beatch!

Em “Cartão de Visita” temos uma primeira amostra de um artista mais descontraído, despido da aura de líder de seita. Ainda há uma carga ideológica aqui, mas é isso que Criolo é e de onde Criolo vem. Sem a missão de informar, de ser atual, de manifestar, o rapper consegue fazer graça até consigo mesmo, repetindo em verso parte da entrevista que virou meme. Tulipa Ruiz dá uma graça extra ao funk que deveria sinalizar um caminho pro rapper, mais popular e mais divertido.

A partir daí o disco sai do hip-hop propriamente dito para seguir na direção da MPB-aprovada, com resultados distintos: se em “Casa de Papelão” e “Pegue Pra Ela”, o rapper se aproveita bem do receituário africano utilizado pelos seus pares da nova cena paulista (a participação de Thiago França na primeira é vital), em “Fermento pra Massa” e “Pé de Breque” faz samba e reggae de manual, de preguiça inversamente proporcional ao interesse provocado. Nesse ponto, já dá para perceber que o resultado final não será muito diferente do que se ouviu em “Nó na Orelha”: um disco bem produzido, cuidadoso para atingir o público do hip-hop sem ferir as sensibilidades da ordeira MPB jovem.

O canto asséptico da voz onipresente da nova música paulista, Juçara Marçal, fecha o disco sem atrapalhar uma das melhores produções registradas em disco pelo rapper. Há em “Fio de Prumo” respostas para os motivos que tornam as reações provocadas por discos corretinhos, como os de Criolo, tão inexplicavelmente extremadas. Mas há outra faixa, em especial, em que esses dois mundos colidem, onde é possível enxergar o que faz tanta gente amar e tanta gente odiar um artista tão pouco afeito a ousadias. Em “Plano de Voo”, com participação de Síntese, temos uma atuação inspirada de Kleber aliada aquela mesma estrutura que virou piada na programa do Canal Brasil. E aí talvez alguém baixe a guarda e veja que é assim mesmo que o pensamento do artista flui: A faz B cometer certa ação, C tem certa qualidade que influi em D e por aí vai. Resta a Criolo parar de pedir ao Pai e passar a ouvir mais o que Ele tem a dizer. Ou vai me dizer que o nome dessa participação especial não é recado de Deus? Taí, Criolo: síntese é o que você mais precisa.