“Pantim” pode ser considerado a estreia de Lulina fora de seu quarto, ou, para usar uma imagem menos claustrofóbica, os primeiros passos além dos limites da Lulilândia. Foi a partir desse seu universo paralelo particular que a cantora pernambucana produziu até aqui seus discos, o oficial e os outros tantos caseiros, retirando desse chão os elementos que compõem uma lírica que se expandia para dentro: a universalização de sofrimentos e impressões muito pessoais por meio de uma infantilização que exaltava o prosaico. Na Lulilândia, minhocas, brinquedos, gírias e bolhas na pleura tinham o mesmo tamanho do amor, da solidão e da existência. Quando se tocava nessas grandes questões era de forma rasa ou engraçada, muitas vezes com méritos, mas também com um acento infanto-juvenil que tornava a proposta simpática, porém inofensiva. “Cristalina”, seu disco de 2009, ficava ali nas margens do fofopop, com algumas boas sacadas, uma combinação esperta entre letra e melodia, e, com poucos ajustes, poderia ser um clássico da discografia infantil brasileira atual, em par com os Partimpins da Adriana Calcanhotto e a Palavra Cantada de Paulo Tatit e Sandra Peres. O fofopop parece estar sempre perto disso, mas falta coragem para se assumir.

Isso não diminui “Cristalina” a não ser na comparação com “Pantim”. Antes, Lulina via o mundo apenas de esguelha, com o olhar assustado de quem vive nesse “abrigo” que é Lulilândia. Agora, ela encara esse nosso lugar comum sem se perder nos clichês. O estranhamento infantil se transforma em um estandarte dos estranhos que saem pela rua reivindicando a sua normalidade. Não se trata mais da menina de Recife que precisa aprender a viver em São Paulo com seus probleminhas e suas inseguranças que têm o tamanho do mundo. “Pantim” apresenta problemas que são consequência de uma desesperança fundamental: o vazio existencial e essa falta de sentido de todas as coisas. A maturação temática é um grande passo nessa sua já longa trajetória, sobretudo por conseguir preservar a leveza e a ironia, duas de suas marcas mais fortes.

“Bombom Recheado” abre o disco de forma auto-explicativa: “Me toquei de que eu não era nada / nem tentei disfarçar com a piada / pra chamar atenção pra me fazer melhor / percebi que eu valia tanto quanto pó”. Aqui, não cabe mais qualquer subterfúgio que disfarce o desconforto quando se tem a consciência do vazio. A introdução solene ao piano é logo desmascarada por um coro meio cabaré de “bom-bom-bom-bom-bom” que afirma a variação na repetição da estrofe: “o mundo todo é uma piada”. É curioso que lembre “O Nada”, primeira faixa do ótimo “UHUUU!” do Cidadão Instigado, no qual se vê também um total desencantamento que se expressa pelo desapego. Lá, Catatau canta “quando você tiver a certeza de que não possui mais nada / e que até a sua própria dor não lhe pertence mais” e talvez seja isso que Lulina tenha percebido: toda aquela dor não é propriamente um problema seu, e daí cantar agora um certo “mal-estar da pós-modernidade”.

“Faxina do Juízo”, “Areia” e “Imperador Buccini” são da fase Lulilândia, novas versões do que já se viu nos discos caseiros. O retorno àquela hipocondria juvenil e à vontade de ser adulta são um desvio temático perdoável. Não se perde a mão na instrumentação, mas é a velha Lulina assustada. Em contraste com a nova via do desencanto, ela soa até um pouco aborrecida.

É possível estabelecer uma outra conversa em “Sexo É Maquiagem”, agora com Karina Buhr. Enquanto Karina canta “Que pena eu não sou / o que você quer de mim” em “Eu Menti Pra Você” de seu ótimo debute, Lulina diz “Eu vou suar / pra me embelezar” e trata as exigências do sexo com a devida seriedade, mas também com bom humor. Canta-se o sexo-aparente, esse que, além de ser maquiagem, é um exemplar perfeito da mentira repetida mil vezes. Aqui, Lulina emplaca sua ironia e faz a denúncia do automatismo com que se aceitam essas meias-verdades. Com Karina e Catatau forma um jovem trio de talentosos nordestinos radicados em São Paulo que renovam velhos temas, se relacionam prazerosamente com a música brega e têm um olhar similar do que o gênero pode e não pode ser.

O disco segue oscilando entre esse papo sem papas na língua (“Meu amor, eu prometo / vou te fazer infeliz”), passa por lampejos de redenção (“E já que estamos aqui / que tal então aproveitar”, “Vamos lá viver / é uma festa”), e termina retomando as rédeas da total desterritorialização na faixa-título: “Nunca ouve festa / eu me enganei / o mundo sorriu pra mim / eu cai nesse pantim”. E nesta alusão contraditória à festa, lembra outro dos grandes autores nordestinos contemporâneos, o pernambucano Otto: “Aqui é festa amor / e há tristeza em minha vida”.)

Lulina define pantim, um regionalismo recuperado do Nordeste, no encarte do disco: “Chamar atenção para alguma coisa”, “Espernear, choramingar”. Pantim é frescura e o disco vai um pouco na contramão de seu título. As frescuras parecem ter ficado para trás na implosão da Lulilândia. O que ela faz agora é mais sutil, é mais inteligente e é mais astuto. O movimento é o de fazer doce uma análise e uma crítica que são ácidas. Trancada em seu quarto, ela chamava a atenção para a própria estranheza demarcando fortemente os dois terrenos: lá fora o normal, aqui, eu e minhas idiossincrasias. Ao virar as costas para o seu antigo universo controlado e “caminhar por aí” (de novo, “O Nada” de Catatau), Lulina embaralha as fronteiras: tudo nesse mundo é um negócio muito doido, e, sem limites e sem firmeza nas pernas, é um trabalho maluco qualquer tentativa de estebelecer uma identidade que seja inteira, sólida e coerente (“A gente bota banca de bem resolvido e maduro / no fundo tá com as pernas bambas”, diz em “Respeite (A Placa)”). Angústia, vazio, melancolia e incompreensão se encaixam com toda a naturalidade na esfera do normal. Como não?

Todos esses avanços temáticos e líricos são um sintoma evidente da maturidade de Lulina, que foi capaz de cumprir algo do que se pode chamar de destino da arte, na sua versão música pop: fazer com que se toquem o trivial e o sublime. Contudo, essa revolução parece ficar restrita ao conteúdo. Na forma, embora haja também avanços, eles são menos contundentes. Mantêm-se firmes os pés naquela estética lo-fi, contraditoriamente afirmando uma identidade que parece demandar, ela também, um pouco mais de angústia. Não se pode negar a contradição quando é ela o objeto da obra, e é ela quem rouba a cena, mas o contraste da alegria dos arranjos com a desilusão paga o preço de fazer lembrar demais a Lulina de ontem. Em contrapartida, não há qualquer indicação de caminho para a Lulina de amanhã. Sabe-se de onde isso vem, mas não se faz ideia de para onde isso vai. Não se deseja sofrimento a alguém de quem se gosta, é claro, mas, nesse caso, seria salutar um mergulho ainda mais fundo no vazio.