Já faz algum tempo que Noah Lennox, o Panda Bear, é tão cosmólogo quanto músico, mais precisamente desde 2007, quando lançou “Person Pitch”. Após um disco meditativo, pequenino e ingênuo inspirado na morte do pai (“Young Prayer)”, Panda Bear entrou em órbita. Situada entre mil samples e centros de gravidade sonora que serpenteavam pelos fones, a música em “Person Pitch” inaugurou uma vontade de verdade quase absoluta do americano. É nesse disco que ele firma sua ambição, mais ousada do que só “fazer um álbum” – classifico Lennox como um cosmólogo porque desde então ele tem lançado o tipo de disco que pretende abarcar todo o mistério do universo, com toda a pretensão que a expressão acarreta, um cantor existencial se ocupando com o antes o agora e o depois da matéria. “Person Pitch”, “Tomboy” e, agora, “Panda Bear Meets the Grim Reaper” são discos metafísicos, obras de grandes questões, versões mundanas do fenômeno extraordinário que é a origem, a criação e o futuro de asteróides e galáxias.

Nessa narrativa, Lennox é também uma espécie de arqueólogo futurista, um vidente que cria o futuro embrenhado no passado. O que tem muito a ver com o repertório de suas inspirações. Com a vozinha fina e as mais doces e derretidas das melodias – a voz dele uma calda grossa de caramelo dançando no ar -, Lennox tem muito a ver com o imaginário dos anos 1960, de longe sua influência mais decisiva, Beach Boys e The Zombies sendo as referências mais fortes e óbvias. A própria capa de “PMBTGR” parece uma versão moderninha da psicodelia da pintura de “Odessey and Oracle’. É nessa década, uma espécie de puberdade da música pop, que se criaram os maiores mitos de criação de muito do que se ouve hoje em dia. E é o senso de auto-descobrimento e possibilidade infinita que Lennox resgata desses tempos, não só quando canta como os cantores da época, mas também quando compõe como se não houvesse limites pra inventividade. O raro é que, cinismo e ironia barata em alta, ele ainda seja capaz de encontrar um deslumbramento robusto e possível, fazendo música como uma criança madura ou um cara numa trip de ácido que é tão extraordinária quanto consciente, medida, inteligente. Lennox compõe como alguém que não só acredita nas coisas, mas alguém que acredita em acreditar nessas coisas. Seus discos são profissões de fé lúcidas.

“PBMTGR”, nesse contexto, poderia ser encarado como uma síntese dos dois discos que o precedem, mas é na verdade uma colisão das cosmogonias que “Person Pitch” e “Tomboy” traçavam. O primeiro era um álbum sem bordas, manchas de som colorido cheias de ecos desorientadores organizadas em canções que pareciam não ter fim; o segundo era uma versão encapsulada e mais soturna dessas origens, um universo pra dentro, mais meditativo do que brisante. “PBMTGR” embaralha essas duas visões e funciona como um acelerador de partículas: pela colisão de seus sons, tenta entender o que é que havia antes de não haver nada, big bang e apocalipse ao mesmo tempo. É um disco que trabalha espaço e materialidade, por isso, um trabalho que soa feito mais por instrumentos do que as gravações de instrumentos, mas que borra o limite entre o som de um sintetizador ou de um piano com a evanescência das gravações desses sons. É sempre como se cada nota e cada timbre estivesse aparecendo pela primeira vez, entre ideia e realidade.

Há muito de dub em “PBMTGR” – cujo título é inspirado nos discos de parceria entre músicos do gênero, geralmente intitulados “fulano meets beltrano” – e há muito também de canto gregoriano e psicodelia sessentista. O importante nessas influências é certo misticismo, um imaginário que, com ressureições, profecias, messias superpoderosos, gaias e redes de ‘energia’, dependendo de quem está falando (rastas, católicos ou hippies), é tão surreal quanto as imagens e os sons que Lennox toca, cheios de barulhos não identificados, frases com lacunas e espaços em branco (poesia, basicamente). “PBMTGR” é um disco baseado em centros ocultos, mundos duplos, espíritos fantasmagóricos de som, música como construção, mas também como mágica.

Cada canção é uma assombração, aparição desconcertante de som. Após um prelúdio baseado em ruídos de ficção científica, uma espécie de transfiguração sonora, “Come To Your Senses” entra numa repetição hipnotizante, uma batida aguda e um sintetizador (ou seria uma guitarra distorcida?) numa ciranda desorientadora que só vai pra frente e pra frente e pra frente num moto-perpétuo. “Você tá aí?”, pergunta Lennox, sem resposta, até que a música se desfaz no que parece um barulho agudo de vários monstrinhos. Talvez não tenha ficado claro até agora, mas “PBMTGR” é um disco de chapado. Daí a importância do dub. O piano de “Crosswords”, o sample de sopros e o jeitão de câmara de “Tropic of Cancer” e o sintetizador saltitante de “Principe Real” têm tanto a ver com o caráter inegavelmente pop do álbum (radiofonia sempre teve a ver com repetição e grude) quanto com esse aspecto de lombra. A insistência dos sons parece querer gravar a memória dos barulhos uma, duas, três, quatro, cinco vezes no ouvido e no cérebro, pra que só então o ouvinte perceba suas inconsistências, seja por contexto ou variedades sutis. É como quando a progressão do baixo de uma canção de rock vai transformando os riffs, a batida e os vocais, que só se repetem, em outra coisa. Cada faixa um transe, o disco inteiro um grande “Oooooom”.