Gaby Amarantos | Treme

Gaby Amarantos

Treme

[Som Livre; 2012]

9.2 FITA RECOMENDA

ENCONTRE: iTunes

por Matheus Vinhal; 28/05/2011

Vamos direto ao ponto, na velocidade do tweet: “Treme” é o disco brasileiro mais importante de 2012. Jamais fariam tal coisa, mas se me pedissem pra escolher um disco, e não mais que um, que pudesse melhor representar o Brasil em 2012, em todas as suas facetas, perspectivas, aspirações, pormenores, eu escolheria o primeiro álbum de Gaby Amarantos. Não porque é o melhor, não se trata disso. São muitos os motivos, na verdade. E são tantos que a qualidade musical de “Treme” periga passar batida nesse texto (lutarei pelo contrário). Mas não se engane, o leitor: se falarmos de música pop, como ela é entendida no mínimo nos últimos 20-30 anos, “Treme” é, musicalmente, um excelente disco.

É aquilo: Arte x Produto. Se essa dicotomia, (quase) 50 anos depois de “I Saw Her Standing There”, ainda lhe faz sentido, devo logo dizer que “Treme” é, sim, antes de tudo, um produto. Mas não apenas. Se o leitor procura um disco desbravador de novos caminhos musicais, ou mesmo um simples disco de tecnobrega, esses álbuns, aviso, não são “Treme”. O disco de Gaby Amarantos não é o que alguns, do alto da sua ignorância travestida de conhecimento, se atravem a chamar de “música de verdade“, assim como não é, tampouco, um disco de tecnobrega puro (mas, qual seria?). Apesar disso, o primeiro lançamento de Gaby possui, sim, elementos do tecnobrega, por exemplo. Tem tecnobrega, pop, música de abertura de novela, cover de sertanejo, axé. E, por que não, tem também sua parcela de experimentalismo, como em “Mestiça”, que inclusive me remete a uma faixa do novo disco do Curumin, curiosamente chamada de, veja você, “Treme Terra”. Gaby Amarantos é um esforço conjunto (de gravadora, artista, mídia em geral, público, por que não, todos organizados não sei por quem) de aproximar, seja por motivos estéticos, seja por motivos de mercado ($), os públicos de um Brasil tão próximo quanto distante. E não há como ignorar o conteúdo social e político dessa tentativa. E não vou me eximir de discuti-lo aqui. A aparição de Gaby Amarantos e a aposta de grandes grupos midiáticos como a Globo na sua música, 10 anos após o início de sua carreira, é um retrato das transformações, especialmente sociais, que o Brasil passou na última década, dentre as quais a mais relevante pra esse texto talvez seja a subida de uma cambada de gente pra uma classe média que, pra delírio de uns e ojeriza de outros, é um dos principais atores e responsáveis estéticos do Brasil de hoje.

Talvez seja interessante situar a divulgação e atenção que Gaby Amarantos (e em geral os ritmos ultra(?)populares) tem recebido recentemente junto a um movimento de valorização – ainda que post-mortem, vide Wando – da música popular brasileira (o brega, não a MPB) de 30, 40 anos atrás. Aos poucos, as placas tectônicas do reconhecimento vão se movimentando e artistas como Waldick Soriano e Odair José recebem parte dos louros que lhes cabem. Essa reconsideração do brega, ainda que tardia e lenta, tem provocado pequenos tremores na música brasileira, que geram desde discussões infrutíferas como esse texto até discos como os últimos das queridinhas da MPB, Céu (“Caravana Sereia Bloom“) e Marisa Monte (“O que você quer saber de verdade“), passando ainda por milhares de documentários – didáticos ou não – tentando contextualizar a produção musical do gênero. Sem contar na experimentação mais indie com o gênero, que já nos rendeu o Cidadão Instigado e toda a influência de Fernando Catatau na atual produção musical brasileira, por exemplo.

Essa revalorização do brega já aconteceu em parte lá nos anos 1990. O interessante é perceber que, enquanto havia uma certa reconsideração dos gêneros populares de então 20 anos atrás, havia ao mesmo tempo um desprezo estético pelo que dá pra chamar de “o brega da época”, quer dizer, o pagode romântico, o sertanejo pré-universitário, o axé music. E é ainda mais interessante perceber que, após 20 anos (já!) da ascensão desses gêneros ao cenário mais popular da nossa música, hoje em dia ocorre justamente uma revalorização deles por parte da classe média alta. Molejo é melhor que Beatles. Com alguns artistas isso acontece por vezes de maneira mais séria, mas quase sempre há algo de chacota, de escárnio, nesse reconhecimento. É o que faz uma lista dos melhores cantores bregas estar presente na categoria “humor” do site de um jornal, por exemplo.

Nos últimos anos, os gêneros mais populares têm tido uma aproximação maior com a tal classe média alta brasileira, mas em geral a partir de uma ironia, de um sarcasmo depreciativo, aproveitador e publicitário como o de grupos como a Banda Uó, ou a partir do filtro “supersofisticado” de artistas como Céu, Marisa Monte, Arnaldo Antunes, ou mesmo Catatau. Quando Gaby Amarantos faz um cover de do sertanejo Ph.D. “Coração está em Pedaços”, uma das melhores composições de Zezé di Camargo, ainda que numa versão não tão inspirada quanto o resto do disco, Gaby Amarantos lembra toda a força das canções dos gêneros mais populares e menos respeitados dos anos 1990, como se afirmasse em qual linhagem de “MPB” prefere ser inserida e se inserir. Serve como uma espécie de POKE, uma cutucada naquela classe média alta que, há vinte anos, desdenhava axés, pagodes e sertanejos e que agora se diverte com memes de molejos, com o mesmo deboche enrustido com que se delicia com a Banda Uó, ao relembrar o que era verdadeiramente sucesso há duas décadas.

“Coração está em Pedaços” ainda traz no seu refrão uma mudança sutil, porém marcante. Quando o homem é trocado, no verso, pela mulher (em “[diga] se não fui mulher pra você“), abre-se outro ponto em “Treme”: Gaby é mulher. A constatação, a princípio ridícula, é uma das mais importantes para se entender como “Treme” pode revelar o Brasil de hoje, muito mais que musicalmente. No disco de Gaby, a protagonista é a mulher, a atual mulher brasileira em suas muitas e variadas facetas, dona de si, da sua bebida, beba doida, carente, nativa, a que geme, branca, nortista, presidenta, brejeira, negra, poliglota, índia, mestiça, lésbica. Por incrível que pareça, todas essas mulheres estão, muito ou pouco, presentes em “Treme”. É um disco, não tenha medo da palavra, feminista, que coloca o homem da balada como um submisso às vontades e desejos das moças, jamais ao contrário. Não há ai, se eu te pego, aqui. Há saia vermelha, camisa preta, café coado na calcinha só pra lhe enfeitiçar. Em “Treme”, é a mulher que fala para o homem o que ele deve fazer, em quem ele deve chegar, para não bobear, quem tá no ar, quem ele deve pegar. Em “Treme”, Gaby Amarantos vira a mulher brasileira por excelência quando canta, em “Mestiça”: “meu amor, eu sou nativa / cativa, eu não sou”. Há um tanto de força e coesão nesse discurso que perpassa todo o disco e já era presente mesmo antes, em faixas como “Festa das Mulheres“, que não entrou no disco (sabiamente, pois é ruim). É um disco feminista, a sua capa não nega, e mais não digo.

Mas nada desse conteúdo todo, dessa importância, de ter música abrindo novela, de fazer disco coeso, nada disso adiantaria se “Treme” não fosse tão deliciosamente pop, como poucos discos têm coragem de ser hoje em dia. Tudo, desde as letras, os timbres, as experimentações, a produção, tudo se destina a se fazer um álbum sem medo de soar grudento, cantável, dançante. Faixas como “Xirlei” e “Ela tá no Ar” são dos melhores momentos da música brasileira em 2012, onde tudo parece se encaixar e quase dá pra acreditar naquele mundo imaginado por David Byrne, num lugar em que o que é bom pode vir de todos os lugares, onde não há preconceito, onde não há medo da música.