Emicida é o atual grande artista da música brasileira. Quando desbanca ícones óbvios que nos saltam à mente como Mano Brown, por exemplo, assim faz por consequência também do momento. Dos cdzinhos vendidos a cinco reais e de mão em mão a cada show com seu irmão Evandro Fióti e o DJ Nyack até “O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui”, o rapper forjou movimentos que parecem naturais se vistos do alto de 2013. Não são – e, digo mais, a incompetência na música popular brasileira para fazê-los é incrível.

Para que você não vislumbre exagero na minha afirmação, relembre cada cenário que Emicida construiu em torno de sua imagem como artista: do nome, a associação imediata com sua importância nas ruas, ou melhor, nas rinhas de MCs; o primeiro hit, “Triunfo”, de acabamento impecável em áudio e vídeo; o diálogo com a geração anterior permitindo que não houvesse uma guerra declarada na cabeça dos fãs do gênero entre a nova geração (com sua, claro, nova narrativa) e os últimos ídolos; o mais importante: a obra.

É nela que me debruço antes de entrar, de fato, em “O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui”. Emicida é a natural evolução de um gênero que teve seu ápice na figura de Mano Brown, salta e estagna na precoce carreira de Sabotage e, assim, chega a este rapper. Sabotage viu nas entorses do choro de Pixinguinha uma inspiração para mudar seu diálogo vocal. Emicida também é outro cabeçudo. Porém, aqui, a superespecialização característica dessa qualidade não está em jogo. Ser nerd significa se emocionar tanto com o anjo da violência pacífica das letras dos Racionais quanto também chorar com um poema de Elisa Lucinda e também introduzir Claudinho e Buchecha em uma música de temática mais romântica. É entender coisas ditas próximas porém sempre polarizadas por uma ignorância mesquinha. Emicida faz isso desde “Triunfo”. Emicida faz isso desde sempre. Isso é tão claro que obra e artista chegam ao primeiro álbum oficial com canjas de experientes. Suas quatro primeiras mixtapes e EPs (“Pra Quem Já Mordeu Um Cachorro Por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe…”, “Emicídio” e “Sua Mina Ouve Meu Rep Tamém”, “Doozicabraba e a Revolução Silenciosa”, respectivamente) são densas na construção da identidade de um artista que é vivo (muito vivo) fora de seu gênero (o rap) e nicho (música independente).

Se você entende isso, entenderá facilmente “Crisântemo” como a música mais bonita que você ouvirá em 2013. Compreendê-la é também mapear como a legitimidade da qual partilha o rapper permitiu-lhe tatear campos e experiências fora de um gênero desgastado no inconsciente coletivo. E é com brilhantismo que, nesta música, Emicida evoca a morte de seu pai ao mesmo tempo que introduz dona Jacira, sua mãe, em letras que no fim da música dão a impressão de serem borradas por um choro desgastado, conformado. Um samba de fundo de quintal acompanha as rimas fortes da nostalgia do que não se viveu, das dificuldades, claro, mas também de como a vida é mesmo só um detalhe em um viver tão díspar de um passado de perrengue tão próximo na mente.

Volte um pouco aqui no Fita Bruta e verá como fiquei encantado com a violência de “9 Círculos“, música composta especialmente para o jogo “Max Payne 3”. Era, então, a melhor música de Emicida. Pasme: ela não faz falta alguma em “O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui”. O Emicida que se juntara a produtores do naipe de Nave Beatz, K-Salaam e Beatnick é, agora, um dos que compõem um álbum rico, de possibilidades, de caminhos e, o mais maneiro: de narrativas em que os erros, se eles existem, são naturais e correm bem próximos às tentativas das composições. Felipe Vassão tem parte da culpa nesse cartório, certamente. O que também é da conta de Emicida, afinal, eram muitas as possibilidades pro “bola da vez” do gênero e, então, vê-se a insistência com quem já trabalha há mais de uma década junto. Podia ser conservador — nunca será, porém, frente ao resultado de “O Glorioso…”.

A essa altura do texto, você já deve ter chegado em climas diferentes do álbum. “Gueto” e “Hoje Cedo” são as grandes peças pop do álbum. A primeira traz MC Guime em ótimo refrão (mas vale conferir essa sacada) em retribuição a um sample que o funkeiro da ostentação fez de “Então Toma”. “Hoje Cedo” é hit óbvio para arrancar cabelos de quem baseado na mesquinhez de nosso mainstream passa a rugir contra todas figurinhas fáceis da geração quase pós-MTV. Pitty, dona de outro refrão marcante no álbum, é um desses alvos. Emicida também é colocado, às vezes, num balaio de gato injusto. Porém, passa bastante ileso em comparação a Criolo (até hoje, é alvo predileto). Eis, então, outro mérito de Emicida: sua obra blinda-o da mesma forma que protege seus convidados. Pitty se sobressai mais interessante do que em muitas músicas próprias; Guime é muito mais do que uma troca de favores. São vitais. Em mão dupla. Todos ganham.

Outros convidados não participam de hits óbvios. São eles: o Quinteto em Preto e Preto (em “Hino Vira-Lata”), o primeiro parceiro de Emicida, Rael (em “Levanta e Anda”), Adriana Drê (em “Bang!”), Rafa Kabelo (em “Alma Gêmea”) e Juçara Marçal e Fabiana Cozza (em “Samba do Fim do Mundo”). Porém, dois não citados acimas merecem destaque. Tulipa Ruiz, além de aparecer na derradeira Ubuntu Fristili (junto com Rael, Cozza e Marçal), é de carisma impressionante na já apelativamente carismática “Sol de Giz de Cera”. Nela, Estela Vergílio, filha do rapper, enfrenta os próprios medos e a insegurança do pai babão em um conto de casa, de rotina. Tulipa é uma das condutoras para que nada ali soe piegas. É claro que a letra de Emicida mesmo nessas condições é fantástica; porém, como se não fosse bastante, a presença de Tulipa é longe de ser lúdica somente. É incrível. Da mesma forma como é a presença de Wilson das Neves (ou como insiste Emicida, “seu Wilson”) em “Trepadeira”. A faixa que rendeu polêmica por causa dos versos em que o eu lírico sugere uma surra de espada de São Jorge na mulher-alvo da música acusa não só o rapper de seguir uma linha misógina característica do rap, mas empata o jogo sendo uma crônica memorável do marido que leva uma bola nas costas. É claro: a bronca reside no fato de que, de qualquer forma, o homem ameaçado continua ameaçando e um pouco ainda por cima da carne seca. Excluindo-se isto, é ainda uma crônica fabulosa, ainda de versos menos contundentes como o “a dor dos judeu choca; a nossa gera piada”, de “Bang!”.

Esguio para forjar sua identidade, Emicida soube enfrentar de peito (e redes sociais) abertos o que poderia estigmatizá-lo. Se seu parceiro de geração, Criolo, sofreu e ainda sofre com isso a ponto de ofuscar a importância de “Nó Na Orelha”, não é do rapper de Cachoeira tal fardo. É difícil, inclusive, deduzir qual será este diante de tudo o que apresenta-se desde sua saída das rinhas para o estrelato. De lá pra cá, Emicida não é de lugar nenhum: não é do baixo Augusta, não é Fora do Eixo, não é inimigo do rap de outrora, não é contrário aos concorrentes diretos de mercado, faz propaganda pra LG, foi patrocinado pela Intel, já esteve dando pico de audiência no Ratinho, rebateu as críticas contra “Trepadeira”, já escreveu carta aberta contra o Zorra Total e tem música na novela. Se antes era o terror de quem o encarava olho a olho nas batalhas de freestyle, Emicida hoje é o pior inimigo para seus amigos contemporâneos: vai ser difícil alguém superá-lo.